Especiais


MOSTRA INTERNACIONAL DE CINEMA DE SÃO PAULO

27.10.2014
Por Daniel Schenker
Destaques da programação da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo.

Baal, de Volker Schlöndorff, e Meló, de Alain Resnais

A conexão com o teatro pautou alguns filmes da Mostra Internacional de Cinema de São Paulo. Dois deles, realizados por diretores renomados, merecem revisão: Baal (1970), de Volker Schlöndorff, a partir de peça de Bertolt Brecht, e Meló (1986), de Alain Resnais, escorado em texto de Henri Bernstein.

O Rio de Janeiro recebeu, no final da década de 1980, uma importante montagem desse texto representativo do jovem Brecht, assinada por Moacyr Góes, com a Companhia de Encenação Teatral. Helena Ignez também se debruçou sobre a obra de Brecht no ótimo e ainda inédito Canção de Baal (2008).

Brecht procurava fazer com que o espectador se tornasse uma peça pensante, no sentido de refletir sobre as questões expostas por meio da fábula, ao invés de travar uma identificação passiva, aos moldes do realismo/naturalismo, com a história e os personagens. Para tanto, valia-se de uma série de procedimentos para, em última instância, promover um distanciamento crítico entre o público e a obra com a qual se deparava.

Dividido em 24 pequenos capítulos, o filme, concebido para a televisão alemã, coloca a plateia diante do insubordinado Baal (interpretado pelo emblemático Rainer Werner Fassbinder), uma espécie de outsider que incomoda a alta sociedade. Schlöndorff – que flertou com o teatro em produções como A Morte de um Caixeiro Viajante, a partir da peça de Arthur Miller (1985), e, mais recentemente, de Diplomacia (2014), oriundo de texto de Cyril Gely, uma das atrações do recém-encerrado Festival do Rio – reúne qualidades em Baal: confirma o valor poético da obra original, dimensiona a relevância da música para Brecht (Baal é apresentado através dela), investe em cortes bruscos e no recurso da voz em off e mantém a câmera próxima aos rostos dos atores. No elenco – que conta com a atriz Hanna Schygulla e a cineasta Margarethe von Trotta –, cabe elogiar Miriam Spoerri, como Emilie Mech.

Em Meló, Alain Resnais assume a influência teatral – presente em outros de seus filmes, como em Vocês ainda não viram Nada! (2011) e Amar, Beber, Cantar (2014) –, realçada, logo no início, pela imagem da cortina, que ressurge no decorrer da projeção para delimitar a transição entre os atos. Na primeira grande sequência, passada no quintal da casa de Romaine (Sabine Azéma) e Pierre Belcroix (Pierre Arditi), a cenografia fica evidenciada. Já as demais ambientações – o interior da casa de Marcel Blanc (André Dussolier), um bar luxuoso, a beira do rio – não despontam como cenários de uma apresentação teatral.

Seja como for, o teatro transparece num especial cuidado com a luz e na determinação em potencializar o trabalho dos atores (Fanny Ardant integra o elenco) nesse melodrama de Bernstein, centrado na relação entre os três personagens, particularmente no vínculo extraconjugal entre Romaine e Marcel. A câmera é conduzida de maneira suave (destaque para a passagem em que Resnais concentra o foco em Marcel, quando este evoca seu sofrimento ao perceber o flerte entre a mulher que amava e um homem na plateia de seu recital).

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Winter Sleep, de Nuri Bilge Ceylan

A influência de Anton Tchekhov se faz cada vez mais presente no decorrer da projeção de Winter Sleep, filme vencedor da Palma de Ouro no Festival de Cannes. Como os personagens do dramaturgo russo, os do cineasta turco Nuri Bilge Ceylan evidenciam jornadas estagnadas ou entediadas longe dos centros urbanos e lamentam a passagem do tempo, especialmente no que diz respeito à sensação de que não aproveitaram a juventude.

Tchekhov parece ser a grande referência, ainda que Ceylan faça outras citações – a Calígula, de Albert Camus, e Antônio e Cleópatra, de William Shakespeare. Através dessas menções, procura desenhar o universo de Aydin (Haluk Bilginer), que trabalhou como ator durante 25 anos e vive retirado à frente de um aconchegante hotel no interior ao lado da mulher, Nihal (Melisa Sözen). Aydan escreve artigos para um jornal e planeja contar a história do teatro turco em livro, enquanto fica exposto à língua viperina da irmã, Necla (Demet Akbag). Nihal se dedica a projeto educacional.

Aos poucos, Ceylan concentra a abordagem em torno dos conflitos entre Aydin e Nihal. Ele exerce sobre ela uma espécie de autoridade disfarçada, desconstruída durante a segunda metade do filme, à medida que o hotel esvazia e o inverno domina a região. Estruturado por meio de cenas longas, Winter Sleep tende a conquistar o público com o ótimo texto e os excelentes atores. Comprova o lugar de destaque ocupado por Ceylan no panorama atual.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Retorno a Ítaca, de Laurent Cantet

Laurent Cantet reúne personagens em torno de um balanço afetivo e doloroso. Mostra, em Retorno a Ítaca, o reencontro de antigos amigos de cerca de 50 anos no terraço de um prédio, em Havana. Eles evocam a morte de outra amiga que integrava o grupo e evidenciam o sofrimento decorrente do descompasso entre os sonhos e as realizações pessoais, entre a Cuba do passado e a do presente.

Os personagens maduros de Cantet lamentam as concessões que tiveram que fazer para garantir a sobrevivência. Em décadas passadas, acreditaram num sentido de utopia, no país, no projeto coletivo, diferentemente dos jovens de hoje, que não veem a hora de deixar Cuba. “Esse não é o país da nossa juventude”, dizem, em determinado instante. O diretor traz à tona rápidos flashes da Cuba atual (a discussão de um casal, homens matando um porco para alguma comemoração, momentos testemunhados pelos amigos da cobertura onde estão).

Conciso e filmado em poucos ambientes, Retorno a Ítaca, porém, não renova o conhecido tema da frustração suscitada pela distância entre os desejos originais de cada um e a realidade propriamente dita. Ainda assim, Cantet comprova sua habilidade para extrair apreciável autenticidade dos atores.

xxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxxx

Atlântida, de Ines María Barrionuevo

A diretora Ines María Barrionuevo faz estreia bem-sucedida no terreno do longa-metragem com Atlântida, filme sobre o rito de passagem de duas irmãs, que ensaiam envolvimentos – Lúcia com uma amiga, Ana, e Elena com um homem mais velho, Ignacio – num dia quente de verão, em Córdoba. Há uma atmosfera de desamparo potencializada pela ausência dos pais dos personagens jovens. Não existem muitas informações sobre eles; no máximo são eventualmente mencionados. Bastante diferentes, elas se atritam em meio a um cotidiano destituído de maiores atrativos. Aos poucos, porém, constroem cumplicidade. Atlântida ganha ainda com os bons personagens coadjuvantes e o acertado registro interpretativo.

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário