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O DIA DO ´FICCO´ PARA O CINEMA BRASILEIRO

30.03.2004
Por Ricardo Cota
O DIA DO ´FICCO´ PARA O CINEMA BRASILEIRO

É bem provável que desde o Cinema Novo a produção cinematográfica brasileira não despertasse tamanha atenção internacional quanto nos dias que correm. Impulsionada pelo fenômeno da Retomada - que segundo Luiz Zanin Orichio, em seu providencial livro Cinema de Novo, foi responsável pelo surgimento de pelo menos 60 novos cineastas – a recente produção cinematográfica ocupa um espaço cada vez mais nobre em festivais, mostras e até mesmo no circuito comercial mundo afora.



Realizado em pleno carnaval brasileiro, de 19 a 29 de fevereiro, o Festival Internacional de Cinema Contemporâneo da Cidade do México (FICCO) ratificou essa impressão. Em sua primeira edição, os organizadores do FICCO não pensaram duas vezes em jogar confete e serpentina sobre a produção nacional. Com pompa e circunstância, o Brasil, além de ganhar uma mostra especial com seis filmes (Viva São João, Cama de Gato, Amores Possíveis, Brava Gente Brasileira, O Invasor, Separações) ocupou espaço na mostra competitiva (O Homem do Ano), nas sessões de gala (Deus é Brasileiro) e nas mesas de debate. Tudo isso desprezando dois dos carros chefes da recente produção nacional: Cidade de Deus, já exibido no México, e Carandiru, cuja estréia, com forte campanha publicitária, estava anunciada para o circuito comercial tão logo o Festival encerrasse.



Segundo a organizadora do Festival, Paula Astorga, o Brasil tem sido um verdadeiro farol para a produção que se realiza nas Américas Central e Latina. “Ao escolhermos o Brasil como convidado especial do Primeiro Festival, fizemos uma opção por uma história que não apenas admiramos como também queremos conhecer melhor”, justifica Astorga. O crítico pôde constatar tal interesse em duas palestras da qual participou como convidado nas Universidades Anahuac e Ibero-Americana, ambas voltadas para estudantes dos cursos de Comunicação Social. Nos encontros, o público indagou basicamente sobre dois aspectos da produção brasileira: a diversidade e as leis de incentivo fiscal.



Vale observar, contudo, que apesar do zelo com o cinema brasileiro, o site do Festival (www.ficco-mex.com) revela que na preferência do rigorosíssimo público só dois filmes brasileiros ocuparam a lista dos top 30 do Festival: Brava Gente Brasileira, em décimo quarto lugar, e Separações, em vigésimo sétimo, curiosamente dois filmes de limitado êxito comercial no Brasil. Para medir o rigor dos mexicanos, o filme favorito do público, Um Homem Sem Ocidente, de Raymond Depardon, teve média 6.81. A preferência pelos filmes de Lúcia Murat e Domingos Oliveira, de temática particularizante, genuinamente local, sem os flertes com o cinema americano e a modernidade propiciada nas ilhas de edição, é, no mínimo, intrigante.



DOCUMENTÁRIOS DÃO O TOM DA CONTEMPORANEIDADE



O Primeiro Festival Internacional de Cinema Contemporâneo destacou-se pela eficiência e pelo voluntarismo da organização. Numa cidade de dimensões estratosféricas, com 25 milhões de habitantes e distâncias imprevisíveis, devido ao trânsito caótico, a organização do Festival acertou ao concentrar as exibições em basicamente dois complexos cinematográficos, o que facilitou em muito o deslocamento dos participantes.



De acordo com Philip Alexander, Presidente do Comitê de Honra, o FICCO tem como objetivo oferecer um amplo panorama do cinema contemporâneo. A mostra competitiva determina como condição para os participantes que os filmes sejam realizados até dois anos antes da data do Festival. Não há empecilhos para filmes que já tenham participado de outros festivais.



O conceito de contemporaneidade com certeza poderá ser melhor explorado em festivais futuros, de qualquer forma, vale destacar o acerto da mostra Opera Prima, em que são exibidos os primeiros filmes de cineastas consagrados. Este ano, por exemplo, foram exibidos filmes como O Sétimo Continente, de Michael Haneke, e Veneno, de Todd Haynes. A exibição permitiu um rico debate sobre o reflexo dessas obras nas atuais produções de seus diretores. A recuperação do passado sob o signo do contemporâneo é o caminho para a afirmação do FICCO.



Nem sempre esse é um processo evolutivo. A exibição de filmes como The Company, de Robert Altman, e And Now... Ladies and Gentlemen, de Claude Lelouch, constatam involuções. No caso de Lelouch, não chega a ser surpresa. Há algum tempo espera-se dele sempre um filme pior do que o anterior. Dessa vez, no entanto, o cineasta parece ter se superado. Com um elenco híbrido que reúne da cantora pop francesa Patrícia Kass ao ator Jeremy Irons, And Now... Ladies and Gentlemen é uma trama romântica alucinada entre um ladrão internacional de jóias desmemoriado, mestre em disfarces, e uma cantora em busca de solução mística para uma doença incurável. Na galeria do humor involuntário, é insuperável a seqüência em que Irons se traveste de velha milionária russa.



Naquele que é seguramente seu pior filme, Altman parece ter sucumbido ao narcisismo da atriz Neve Campbell. Dividindo as funções de atriz e produtora executiva, Campbell tenta nos convencer ainda de seus dotes de bailarina. Não convence. O filme retrata os bastidores de uma companhia de balé moderno. As histórias, no entanto, são superficiais e não têm a costura típica dos melhores Altman. O resultado é uma caricatura grosseira da vanguarda e uma mistificação da vida de artista que só deve agradar aos que pensam que gostam de balé.



Afinado com a contemporaneidade, o FICCO confirmou a excelente safra mundial de filmes documentais. Os internacionalmente consagrados Na Captura dos Friedmans e Balseros dividiram espaço com bons exemplares mexicanos, como Canción Del Pulque e Quinze Anos em Zaachilla. Este último, dirigido por Rigoberto Perezcano, retrata a singela preparação de uma festa de debutante no interior do país e mereceu o prêmio Kodak, definido por um júri formado por críticos de cinema.



O grande destaque na categoria ficou mesmo por conta do excelente Absolut Warhola, inspirado em idéia originalíssima. Com irreverência contida, o diretor alemão Stanislaw Mucha visita a família de Andy Warhol na Polônia, formada por velhos camponeses que não têm a menor idéia da importância de Warhol para a cultura pop. O choque de informações nos faz refletir sobre o isolamento cultural e o impacto da cultura pop no mundo.



Presidido pelo cineasta Mike Figgis, o júri do primeiro FICCO preferiu não arriscar ao entregar o prêmio principal ao filme O Retorno, do russo Andrey Zvyagintsev, vencedor do Leão de Ouro em Veneza. É um relato simbólico sobre o autoritarismo inspirado na relação entre um pai ausente e seus dois filhos. Obras ousadas, como Uzak, de Nuri Bilge Ceylan, e Shara, da japonesa Naomi Kawase, foram preteridas numa decisão que infelizmente não esteve à altura de um festival que se quer sintonizado com o contemporâneo.



Como todo evento inicial, o FICCO tem ainda muitos desafios pela frente. A parceria com a cadeia Cinemex, o Cinemark de lá, embora tenha sido acertada em termos de espaço, projeção e localização, precisa se afiar mais com o espírito do próprio evento. As sessões eram apresentadas por meninas impessoais vestidas no pior estilo MacDonald´s. Limitavam-se a apresentar o filme em espanhol e inglês. A frieza das apresentações contribuiu para diminuir o interesse pelos debates que seguiam às sessões e em alguns casos deixaram convidados constrangidos, como o nosso Beto Brant, que como outros tantos diretores não teve com quem dialogar ao término de O Invasor. Os filmes deveriam ser apresentados por gente do Festival e os diretores, é óbvio, apresentados antes dos filmes.



Ajuste mais complicado parece ser a formação de um júri da FIPRESCI, a Federação Internacional de Críticos de Cinema. De acordo com os organizadores, a crítica mexicana está fragmentada e sem uma representação oficial. O FICCO pode ser um fórum para a reconstituição dessa crítica e a formação do júri que com certeza só irá agregar valor ao bem-sucedido Festival Internacional de Cinema Contemporâneo, que arejou a fascinante Cidade do México com mais de 150 filmes.

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