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O CINEMA DE EDUARDO COUTINHO EM FOCO

31.03.2004
Por Andréa França
A VERDADE DO PROCESSO DE FILMAR

Com a aparição e a difusão da tecnologia digital, a distância entre a realização de um filme e nós vem se reduzindo bastante. A quantidade de filmes documentários que tem chegado aos festivais nacionais, por conta dessa nova tecnologia, é surpreendente quando se compara com cinco ou seis anos atrás. Talvez se possa falar em uma nova geração de documentaristas brasileiros que ganha força a partir do final dos anos 90, dentro de uma tendência de fome de real, de fome de vínculo social com o mundo. Ao invés de fragmentar a linguagem, fazer transgressões formais, tão típicas do cinema dos anos 60 e 70, esses cineastas têm procurado reativar os vínculos sociais com a sociedade, em uma “paixão pelo real” (expressão do filósofo Alain Badiou) focada nas formas de participação em comum.



É em meio a essa “febre de documentar” que o livro de Consuelo Lins chega a nós. O Documentário de Eduardo Coutinho: Televisão, Cinema e Vídeo é fruto de mais de dez anos de estudo, pesquisa, acumulação de reflexões e escritos em torno do cinema documentário. Tendo finalizado sua tese de doutorado no início dos anos 90, a autora já se propunha a pensar criticamente o filme documentário e suas diferentes modalidades ao longo da história, colocando em cena, para isso, diretores como Vertov, Rouch, Kramer, Wiseman, Salles, Furtado e outros. Como ela conta na introdução do livro, foram os vídeos Santa Marta, Duas Semanas no Morro (1987) e Boca de Lixo (1992), de Eduardo Coutinho, que a reconectaram com o Brasil (estava em Paris) e fizeram com que “tivesse a vontade e o prazer de escrever sobre cinema: queria entender melhor aquilo que me marcara.”



Começa então um processo de aproximação com a obra (e mais tarde, com o próprio Coutinho), onde a autora mostraria - não só em artigos, mas também em sala de aula – que seus filmes revelam muito mais a respeito da filmagem, a respeito da verdade do processo de filmar, do que procuram estabelecer a verdade de seus personagens, de um certo acontecimento histórico, de um determinado lugar. Em O Documentário de Eduardo Coutinho, Consuelo se detém mais demoradamente sobre cada um de seus documentários (não todos, mas “aqueles que contam”, segundo o diretor), começando pela época da televisão, a experiência de Coutinho no Globo Repórter, passando pelo cinema, onde a análise de Cabra Marcado para Morrer ilustra de modo vigoroso essa etapa, até a opção pelo vídeo como condição essencial para a realização de Santo Forte, Babilônia 2000 e Edifício Master.



A opção da autora por seguir uma cronologia dos documentários como fio condutor para as análises - ao invés de aproximar e distanciar os filmes segundo conceitos e formas de abordagem - é extremamente acertada. Permite ao leitor acompanhar passo a passo, e de perto, a trajetória de um cineasta brasileiro absolutamente original, cujos filmes não cessam de nos fazer ver e ouvir o real dos corpos - de gestos, movimentos, falas, entonações, atitudes. Coutinho realiza com seu cinema um movimento de abertura ao outro, diz Consuelo, possibilitando que a vida de seus personagens e a história que narram não tenham a menor distinção. Assim é que o real e a ficção se tornam indiscerníveis e os papéis que os personagens experimentam, ou inventam para si, podem efetivamente ir além do filme e entrar na vida. Como afirma o diretor, é um cinema que quer “entender as razões do outro, sem lhe dar necessariamente razão”.



Acompanhar de perto a trajetória de realizações do cineasta, como método de organização, é acertado também porque a autora opta por dar grande destaque às falas de Coutinho. Ao abrir espaços para a voz do diretor em entrevistas exclusivas, Consuelo dá ao leitor a excelente oportunidade de ter contato com um pensamento em ato: lucidez, senso crítico, argúcia, rigor, são aspectos dessa fala que, à medida que o livro avança, se constitui enquanto pensamento de uma disciplina absoluta – necessidade de pensar o mundo, o outro, a relação do cineasta com seu objeto, o por quê fazer cinema documentário no Brasil. O prefácio de João Moreira Salles destaca esse pensamento que se formula enquanto “teoria encarnada, consubstancial à prática”. Ao mesclar as falas do cineasta - a respeito dos procedimentos de criação, métodos de trabalho e opções estéticas - com uma série de fotos e uma bem fundamentada reflexão teórica, a autora consegue despertar o pensador (de cinema) no leitor.



O livro fornece - através das relações que estabelece com a memória do cinema, as imagens midiáticas e o contexto socio-cultural do país - subsídios para melhor compreender um cineasta que vem, segundo a autora, praticando “uma operação de subtração de tudo que ele não considera essencial”, um cineasta que “tenta compreender o imaginário do outro sem aderir a ele, mas também sem julgamentos ou avaliações de qualquer ordem, ironias ou ceticismos, sem achar que o que está sendo dito é delírio, superstição ou loucura”.



Colocar em xeque as idéias preconcebidas que construímos a respeito do outro e do mundo é um dos aspectos do cinema do diretor. E a autora procura mostrar, em passagens notáveis, como funciona esse dispositivo ao longo da obra: a necessidade de Coutinho “negociar o seu desejo com o do entrevistado”, o que não significa “dar voz ao outro” simplesmente, mas como dar voz ao outro, porque “a palavra não é essencialmente do outro, ela é um território compartilhado.”



Das análises filme a filme, destacaria os capítulos dedicados a Babilônia 2000 e Edifício Master. Ambos contaram com a participação da autora na pesquisa e durante as filmagens, de modo que o leitor pode experimentar mais concretamente a prática cinematográfica de Coutinho, o por quê de certos procedimentos adotados na filmagem e a eliminação de outros tantos. O leitor se dá conta que, ao contrário do que imagina, “perguntar é efetivamente uma tarefa difícil”, implica saber orientar uma conversa e atrapalhar o menos possível, saber ouvir, mas intervir de algum modo.



Se até Babilônia 2000, boa parte dos filmes de Coutinho lidam com um material semelhante ao das reportagens sobre pobreza e miséria, tornadas objeto de espetáculo pelo telejornalismo, a novidade de Edifício Master é lançar um embate com um outro tipo de produção midiática, os reality shows, cuja regra é expor a intimidade como valor de troca. Como destaca Consuelo, os moradores do Master, pertencentes aos setores médios da população, trouxeram um outro tipo de dificuldade para a equipe, que se deparou com pessoas reais (como sempre, o problema da ética no documentário) desejosas de alardear aspectos da vida pessoal para escapar da solidão e ganhar celebridade. Lendo essa parte, me perguntava: como furar a lógica tão atual de que só valemos quando nossa casa é devassada por uma câmera, como romper com a regra tácita que diz que o que se tem e se exibe dá a medida do que se é?



Guy Débord foi no nervo da questão porque tudo virou de fato um grande espetáculo: a intimidade, a sexualidade, a religião, a política, o que se come, o que se veste, o que se tem. A paixão pelo real e a paixão pelo espetáculo são a dupla face da mesma moeda contemporânea, onde o fascínio pela ilusão da transparência total dá as cartas: tudo ver, tudo mostrar, não esconder nada.



A autora porém não está interessada em abraçar discursos de entusiasmo ou de desespero. A ela interessa ocupar-se simplesmente em dar continuidade à análise da obra. Com isso, ganhamos de presente um capítulo final dedicado ao filme Peões, em processo de finalização, em um estudo que irá contribuir para futuros debates e reflexões em torno da imagem e do imaginário da classe operária na história do cinema.





# O DOCUMENTÁRIO DE EDUARDO COUTINHO: TELEVISÃO, CINEMA E VÍDEO

Jorge Zahar Editor

205 páginas





ANDRÉA FRANÇA é professora de cinema e pesquisadora da UFF, autora de Terras e Fronteiras no Cinema Político Contemporâneo e Cinema em Azul, Branco e Vermelho – A Trilogia de Kieslowski, diretora do documentário Presente dos Deuses.

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