Críticas


O ABUTRE

De: DAN GILROY
Com: JAKE GYLLENHAAL, RENE RUSSO, RICK GARCIA.
22.12.2014
Por Luiz Fernando Gallego
O maior trunfo está na interpretação de Jake Gyllenhaal em uma das mais convincentes composições de um psicopata no cinema.

O principal trunfo de O ABUTRE é uma das mais convincentes composições de uma “personalidade psicopática” para o personagem principal: desde o roteiro até a interpretação precisa de Jake Gyllenhaal. Um dos livros clássicos sobre o tema tinha um título exemplar, “A Máscara da Sanidade”. O psicopata não ouve vozes, não tem ideias delirantes do tipo “marcianos controlam minha mente” ou “o FBI e a KGB se uniram para me perseguir”. Mas “ele não pode ser normal”, percebe o senso comum, e com toda a razão: só que o que foge à norma está essencialmente na relação mental do psicopata com as outras pessoas. Eles não têm a menor identificação com qualquer coisa que não seja seu próprio “eu”, não se identificam com o sofrimento alheio e, portanto, fazem o que lhes dá satisfação, independente do que possa acontecer aos demais: se há obstáculos para suas metas, esses obstáculos têm que ser removidos, como se isto fosse a coisa mais natural do mundo. Eles podem não ter nenhuma deficiência intelectual, podem até mesmo ser bastante “espertos” e perceberem que certas coisas que fazem são passíveis de punição - e só por isso é que tentam disfarçar os atos que poderiam lhes trazer problemas legais, sendo que muitas vezes fazem isso muito bem, arquitetando “crimes perfeitos”.

E é isso que o espectador vai encontrar com precisão no comportamento de 'Louis Bloom': se ele deseja um relógio que está no pulso de outro homem ele vai conseguir o relógio, mesmo que por essa meta fútil ele tenha que matar. As coisas vão crescer de intensidade se ele passar a exercer a função de repórter free lancer, desses que detectam mortes escabrosas, acidentes horríveis, crimes tenebrosos para programas sensacionalistas de TV disfarçados de "noticiários" locais. Algo que no passado se chamava de “imprensa marrom” e que só existe porque existe no público um lado “marrom” que se compraz com tais relatos. E imagens.

Para Lou, filmar pessoas que acabaram de ser violentamente assassinadas não é problema algum, ele não se identifica com a dor alheia. E vender essas imagens para meios de comunicação - que com colarinhos limpos exibirão o que foi filmado por mãos sujas - não passa de uma consequência natural.

Neste ponto, o que seria individual se expande para o social: o que Lou faz tem cumplicidade com a sociedade em geral, ou seja, com os traços psicopáticos dos que não são radicais como ele, mas que têm, como humanos que todos somos, o germe, o potencial de sermos um pouco como ele é.

Esse lado mais geral da morbidez coletiva não é exposto concretamente em O Abutre como era mostrado no clássico A Montanha dos sete abutres - coincidente título nacional que recorreu à mesma ave de rapina para o que, no original, se chamava Ace in the Hole, uma das maiores obras-primas de Billy Wilder e um de seus maiores fracassos de público e crítica quando lançado em 1951; a ponto do estúdio o ter relançado com outro nome, The Big Carnival, também sem sucesso, e ter chegado a descontar o prejuízo financeiro dos ganhos que o cineasta teve em seu filme seguinte. O que deve ter incomodado o público da época, críticos americanos incluídos, foi o retrato da população que, antes da TV chegar a ser o que é, ia em massa ao mafuá montado em torno de uma tragédia anunciada: um operário de mina preso sob uma enorme pedra em uma gruta, e cujo resgate estava sendo feito do modo mais demorado. Para que a notícia, via jornais impressos e rádio, tivesse mais tempo de correr o país, e com isso, angariar fama e dinheiro para o repórter venal que instigou esse tipo de “ajuda” junto às autoridades corruptas - em vez de outra forma de salvamento mais rápido e seguro. Apesar de Wilder sempre ter ido além do “bom-mocismo” em seus filmes e em cada época que os realizou, era necessário punir o repórter neste seu excepcional e malfadado filme, aliviando um pouco a consciência culpada do público cúmplice com a "sensação" da noticia mais "criada" do que o fato acontecido. Mesmo assim houve brutal rejeição do retrato “exageradamente” real que o filme de Wilder espelhava sobre a sociedade de massa.

Em Nightcrawler (título original), mais de seis décadas depois, o grande público é representado apenas pelos mencionados índices de audiência crescentes do programa sensacionalista de TV para o qual Lou vende as imagens que filma: corpos despedaçados, mutilados, baleados, etc. Mesmo que para tanto ele tenha, mais ainda do que o repórter vivido por Kirk Douglas no filme de Wilder, induzir alguns “acidentes” para ser o primeiro a conseguir as imagens mais “fresquinhas” para vender. E ficar conhecido - porque já não é de hoje que vivemos imersos na dita “cultura do espetáculo” ou “cultura do narcisismo”.

Nem sempre esse “narcisismo” se revela em corpos malhados, turbinados, ou em rostos enfeitados: Gyllenhaal, para compor seu personagem emagreceu o suficiente para surgir enfeado, com rosto encovado e ar de miserável à margem da sociedade. Mas não deixa de ser autocentrado em suas metas - e pobre de quem se interpuser: ele usa a tal “máscara da sanidade” e se faz inicialmente confiável. Embora privilegie apenas seus projetos egocêntricos e mesquinhos, sem nenhuma identificação com qualquer “coisa” (gente) que não seja ele mesmo, empatiza de modo perverso com aquilo que as pessoas gostam de escutar para atender suas máscaras sociais ideais e politicamente corretas: ele faz desfilar frases feitas, clichês vazios nos quais ele mesmo não acredita - e talvez nem compreenda exatamente o que repete feito um papagaio - mas conquista confiança. Curiosamente, mais para o início do filme, uma primeira tentativa de conseguir um emprego junto a um sujeito também pouco honesto no que faz (comprador de objetos de procedência mais do que duvidosa), é frustrada porque o tal sujeito resume, curto e grosso, que não vai “contratar um ladrão”. Direto e rude, sabe do que fala e com quem fala.

Já uma produtora de noticiário sensacionalista tenta o jogo duplo de se beneficiar do “material” que Lou lhe entrega, julgando ver nele um indivíduo manipulável pelo poderzinho que ela tem - do ponto de vista dela, muito superior ao de Lou. Não diremos aqui quem vai usar mais o outro, deixando ao espectador descobrir indo ver o filme. Bem interpretada por René Russo (mulher do diretor), essa personagem lembra o de Faye Dunaway em Rede de Intrigas, de Sidney Lumet, 1976.

O roteirista Dan Gilroy estreia na direção recorrendo à equipe do filme anterior para o qual ele escreveu, O Legado Bourne, de 2012, dirigido por seu irmão, Tony Gilroy, também ex-roteirista. Se O Legado não foi tão bem sucedido como a trilogia Bourne que o precedeu, a equipe, competente, serviu bem ao diretor estreante, especialmente no que diz respeito à fotografia predominantemente noturna de Robert Elswit (já oscarizado por Sangue Negro, 2007), mas também à ótima edição de John Gilroy (outro irmão do diretor) e à boa trilha musical de James Newton Howard.

Por fim, cabe lembrar que a trama de A Montanha dos sete abutres foi praticamente reproduzida em filme menos lembrado de Costa-Gavras, O Quarto Poder, de 1997, no qual Dustin Hoffman fazia mais exatamente o mesmo que Kirk Douglas no filme de Wilder - sendo que neste O Abutre, apesar dos vários pontos de contato, o foco é ainda mais centrado na personalidade dos que dominam a mídia e se utilizam dela para objetivos mais torpes: mais do que aproveitar um fato acontecido e "esticá-lo", aqui, as notícias chegam a ser totalmente criadas para deleite perverso dos que as produziram.

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