Críticas


ANTI-HERÓI AMERICANO

De: ROBERT PULCINI e SHARI SPRINGER BERMAN
Com: PAUL GIAMATTI, HOPE DAVIS, JUDAH FRIEDLANDER, JAMES URBANIAK
03.05.2004
Por Marcelo Moutinho
HUMANO, DEMASIADAMENTE HUMANO

Várias camadas, que se amalgamam numa interessante discussão de fundo sobre o que é “adaptável” no jogo entre realidade e ficção, fazem de Anti-herói Americano um dos filmes mais atraentes da temporada. Livre dos cacoetes que o “cinema independente” acumulou com o passar dos anos, o trabalho dos diretores Shari Springer Berman e Robert Pulcini apresenta singularidade e frescor raros numa época tão tendente a maneirismos vazios.



O filme conta a história de Harvey Pekar (Paul Giamatti), figuraça que entre a paixão pelo jazz e pelos quadrinhos toca uma existência pacata e burocrática como arquivista de um hospital. Para purgar esse banal cotidiano, Pekar decide registrá-lo (ou reencená-lo) sob a forma de HQ, e consegue driblar sua confessa falta de habilidade com desenhos ao conhecer o já razoavelmente famoso Robert Crumb (James Urbaniak) nos anos 70. Será Crumb, imediatamente interessado nas tramas construídas por Pekar, o responsável por transformar o arquivista em personagem da revista American Splendor, que viria a se tornar célebre.



Se a trivial vida de Pekar à primeira vista já parece pouco afeita ao registro em quadrinhos, o que se dirá de uma adaptação cinematográfica? Em ambos os casos, no entanto, o processo se revelou bem-sucedido. Na HQ, porque não foram poucos os leitores que se identificaram com o enfadonho destino looser (para usar uma palavra bem americana) do arquivista. E no cinema, porque os diretores lançaram mão de uma grande idéia. Além de reproduzir, pintando em tons ocres, a trajetória do protagonista - incluindo suas obsessões e idiossincrasias, o inusitado casamento com Joyce (Hope Davis) e a luta contra o câncer -, Berman e Pulcini acrescentaram à narrativa novos planos. Quais sejam: a presença do próprio Pekar, comentando a atuação de Giamatti, e as animações que retratam as diferentes representações do personagem na American Splendor. Há também a pequena porém importante referência a uma montagem teatral onde o Pekar do filme vê-se espelhado.



A eficiente montagem garante que a interlocução entre tais níveis se dê com harmonia e que sejam percebidas não só as interseções, mas também as incongruências possíveis na passagem da realidade para a ficção. Não são poucos os momentos em que a participação dos que viveram verdadeiramente a situação descrita mostra-se mais interessante sob o ponto de vista dramático do que suas virtuais mímeses, caso dos desempenhos do próprio Pekar e do nerd auto-proclamado Toby Radloff (Judah Friedlander). Isto, não obstante as ótimas atuações de todo o elenco, principalmente de Giamatti.



Original acima de tudo, Anti-herói Americano é embalado por uma deliciosa sucessão de temas jazzísticos tão ao gosto do protagonista e traz seqüências hilárias, como as que centram foco nas desconstrutivistas idas de Pekar ao programa de David Letterman e em sua relação com os (hilários) colegas de trabalho, que, numa das mais tocantes cenas do filme, o homenageiam pela aposentadoria. Sim, porque Pekar, malgrado sua aparente estranheza e algum sucesso com as histórias em quadrinhos, seguiu trabalhando por mais de três décadas como arquivista. O que pode sugerir que talvez sua ordinária vidinha não esteja assim tão distante da nossa, como sinteticamente constata a frase pronunciada, quase no fim da projeção, com a qual justifica porque “aquilo não era um final feliz”. “Cada dia é um dia de luta”, diz ele.



Humano, demasiadamente humano.





# ANTI-HERÓI AMERICANO (American Splendor)

EUA, 2003

Direção: ROBERT PULCINI, SHARI SPRINGER BERMAN

Roteiro: ROBERT PULCINI, SHARI SPRINGER BERMAN (baseados nas histórias em quadrinhos de Harvey Pekar e Joyce Brabner)

Produção: TED HOPE

Música: MARK SUOZZO

Fotografia: TERRY STACEY

Desenho de Produção: THÈRESE DEPREZ

Montagem: ROBERT PULCINI

Efeitos Especiais: TWINKLE

Elenco: PAUL GIAMATTI, HOPE DAVIS, JUDAH FRIEDLANDER, JAMES URBANIAK, HARVEY PEKAR, JOYCE BRABNER

Duração: 101 min

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