Numa das primeiras cenas do documentário Ser e Ter, duas tartarugas atravessam lentamente a sala de aula vazia. Estamos numa minúscula escola rural da região de Auvergne, sudeste da França, onde um professor responde pela educação elementar dos filhos da comunidade, em regime de sala única. Georges Lopez não apenas ensina o be-a-bá, como também os hábitos de higiene, o trato com os apetrechos de cozinha, resolve querelas entre os alunos, leva-os a passear no campo e tenta minorar dificuldades emocionais.
As tartarugas assumem, assim, o lugar de símbolo desse universo fechado, isolado e autosuficiente, alheio à maioria das questões do ensino moderno. As tartarugas são o oposto do elefante que serviu de metáfora ao filme de Gus Van Sant, que tratava da Columbine, epíteto da escola americana moderna, impessoal e problemática. A escola de Ser e Ter é uma extensão daquele mundo parado no tempo da campagne francesa, feito de vaquinhas inofensivas, paisagens adormecidas sob a neve e crianças que não conhecem os últimos palavrões.
O diretor Nicolas Philibert a tudo observa sem fazer perguntas. Aparentemente, não há questões a colocar. A câmera, muitas vezes rodando sozinha, sem a presença do cinegrafista, capta as minúcias do ambiente escolar sem quase nunca se fazer presente. O microfone absorve cada sussurro, cada ruído exterior que penetra através das janelas. O método é transparente em sua isenção, exceto numa única entrevista com o mestre e em dois momentos em que o objetivo claro é flagrar a emoção na conversa difícil do professor com alunos específicos.
O espectador fica à mercê dessa contemplação pretensamente neutra. Ali cada um pode projetar suas próprias ilações sobre a natureza da pedagogia tradicional, em oposição ao ensino “selvagem” praticado nas escolas urbanas e modernas. A alguns, a escolinha de Lopez vai parecer encantadora e ideal – um modelo de proteção paternal e formação de caráter. A outros, poderá soar ultrapassada e alienante, na medida em que as crianças não são estimuladas a desenvolver sua própria personalidade, mas a emular um padrão de comportamento baseado em autoritarismo suave e padrões preestabelecidos.
O filme, modesto em sua origem, acabou se tornando um evento de choque na França, batendo o recorde de bilheteria para documentários no país. Foi visto por mais de 1,5 milhão de pessoas, que certamente se enterneceram com uma experiência evocativa do sensível Na Idade da Inocência, de François Truffaut. Ser e Ter ganhou o prestigioso Prêmio Louis Delluc e desencadeou um debate nacional sobre os rumos da educação. A inesperada repercussão do filme despertou ambições raras no contexto dos documentários. O professor Lopez abriu dois processos contra os produtores, reivindicando o pagamento de salários e indenizações (este já decidido contra ele) e direitos de co-autoria por ter cedido sua “obra” pedagógica para o filme (a ser julgado em junho próximo). Na esteira desse caso, os pais de alguns alunos entraram igualmente na Justiça por exploração de imagem além do que teria sido autorizado durante as filmagens.
Estas foram respostas irônicas à visão um tanto paradisíaca que Philibert construiu a partir de sua convivência com a comunidade durante o ano letivo de 2001. O diretor acompanha o professor em sua paciente “normalização” de conflitos e sua devotada insulação das crianças no pequeno mundo à sua volta, onde o risco supremo consiste em ficar perdido por alguns minutos num milharal. Cabe aqui ressaltar dois momentos de exceção. Num deles, um garoto faz o dever de casa de Matemática cercado pela pressão dos familiares. No outro, as crianças visitam o colégio mais atualizado que os espera no futuro, com sua cantina self service, sua biblioteca self service, sua arquitetura self service. Nessas duas seqüências, o filme abre janelas para uma reflexão indireta: Georges Lopez conduz um paraíso pedagógico ou uma célula de autoritarismo paternalista com calda de chocolate?
Enquanto assistia a Ser e Ter e nas horas que se seguiram, remoí um bocado essas considerações. Saí do cinema convencido de que Philibert tinha engendrado um manifesto anti-moderno, uma peça saudosista de pura idealização. Um pouco depois, de cabeça fria, e rememorando as cenas do dever de casa e do colégio self service, achei que também poderia ser sutilmente o contrário. O filme observa bem mais que questiona. A nós, espectadores, caberá questionar bem mais que simplesmente observar.
# SER E TER (ÊTRE ET AVOIR)
França, 2002
Direção, fotografia e montagem: NICOLAS PHILIBERT
Produção: GILLES SANDOZ, SERGE LALOU
Música: PHILIPPE HERSANT
Som direto: JULIEN CLOQUET
Duração: 105 minutos
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