Em Filme De Amor , Julio Bressane passa da teoria para a prática. Ou será o contrário? Às vezes, o cineasta consegue fazer o mais difícil: falar sobre o desejo – e sobre a sua realização como possível veículo para profundas transformações psíquicas. “O prazer passa mas o desejo volta sempre; é o alimento do amor”, dizem, em dado momento. Apesar de mostrar as personagens tentando realizar aquilo que lêem/enunciam, Julio Bressane faz mais do que afirmar o cinema como concretização do literário. Assina um filme sobre o passar pelas experiências, convidando (ou talvez intimando) o espectador a participar desta “festa suburbana”, a compartilhar como voyeur da intimidade dos que estão na tela.
São três as personagens de Filme De Amor e nem sempre todas participam do mesmo ato, ainda que estejam em conexão durante o tempo inteiro. Ocasionalmente há o olhar de quem “fica de fora” e também o olhar do espectador. Mas esta inclusão da platéia não se dá a partir dos tradicionais mecanismos de identificação com quem está na tela, na medida em que Julio Bressane não facilita no processo de aproximação. As próprias personagens parecem distanciadas umas das outras, uma desconexão que não é suprida nem pela corrente elétrica que percorre os corpos no instante do contato sexual, nem pelos sussurros coloquiais no início da projeção – que logo dão lugar, numa passagem propositadamente não natural, a uma dramaturgia refinada.
Ao contrário do que se tende a pensar, as explanações teóricas injetam vida a Filme De Amor e não estão descoladas do resultado estético. A trilha sonora de Guilherme Vaz, por exemplo, presta importante contribuição na solidificação de um vínculo afetuoso com o universo do antigo, uma das importantes vertentes do filme. E a fotografia de Walter Carvalho não se limita a emoldurar uma dada verborragia mas joga luz sobre corpos abandonados que buscam sua liberação num quarto fechado. Um enclausuramento que contrasta, pelo menos em parte, com a literalidade da idéia de que “o sexo precisa sair da escuridão, ir em direção ao ar livre” e com os espaços abertos já flagrados pelo cineasta em trabalhos como Miramar . É no plano “prático”, evidenciado no momento em que as ocupações profissionais de cada personagem são localizadas na fabricação de um elo algo forçado entre o popular e o erudito, que o cineasta periga quebrar com uma certa credibilidade, até então construída de modo subjetivo. Esta interrupção da veracidade pode trazer como conseqüência um afastamento mais concreto entre a obra e o público, de costume resistente diante do contato com material de natureza abstrata.
No entanto, Julio Bressane voa alto no impalpável e sublinha em Filme De Amor a noção de que “é preciso matar a coisa viva para conhecê-la satisfatoriamente” para, quem sabe, atingir um determinado estágio de “transfiguração” no encontro com um outro de si mesmo (“Essa inclinação para ser outra, para sair de mim”). Uma tentativa de entrar em contato com o sublime, de transcender o nível terreno através de um mergulho total na experimentação humana. Tarefa adequada a um artista como Bressane que, no que diz respeito ao cinema, vem simbolizando, ao longo do tempo, um movimento em louvor da experimentação, tão escassa nos filmes contemporâneos, e procurando mostrar através dela que “pelas coisas audíveis e visíveis chegamos às coisas inaudíveis e invisíveis”. Cabe pensar, porém, até que ponto o cineasta tem evoluído em suas buscas, se existe alguma acomodação no que diz respeito à metodologia estudiosa que antecede cada realização e ao aprimoramento técnico inegável de seus trabalhos, se permanece fiel diante da proposição de sair de encontro ao desconhecido.
Mesmo que indagações sejam lançadas sobre as suas investigações, Julio Bressane sensibiliza o espectador com Filme De Amor , obra vencedora dos prêmios de melhor filme, fotografia e trilha sonora na última edição do Festival de Brasília, que ganha relevo nas interpretações dos atores – com Fernando Eiras, ator recorrente em produções do cineasta, num trabalho de construção à mostra ainda que dentro do registro discreto no qual foi colocado, Josie Antello tirando partido de sua expressividade facial numa chave de humor debochado e bem brasileiro e Bel Garcia deixada numa posição menos confortável como que aprisionada dentro de uma aparente contenção que desmorona diante da erupção de um tom de voz afetado e capaz de exprimir um certo frenesi. Exceções à parte, os momentos de inesperado e sutil descontrole costumam ser os mais reveladores da verdade humana.
# FILME DE AMOR
Brasil, 2003
Direção: JULIO BRESSANE
Roteiro: JULIO BRESSANE, ROSA DIAS
Elenco: FERNANDO EIRAS, JOSIE ANTELLO, BEL GARCIA
Fotografia: WALTER CARVALHO
Trilha Sonora: GUILHERME VAZ
Duração: 116 minutos