Até mesmo o exercício de definir Marlon Brando é magnificamente fútil. Vamos aos superlativos: o maior ator do século XX? Sem dúvida. Se na primeira metade Laurence Olivier consolidou a tradição dos “téspios” em uma forma clássica de atuação absoluta e inquestionável (a perfeição possui esses méritos), foi Brando que libertou o ator de qualquer espécie de forma, mesmo a perfeita. Apontado como o paraíso dos “stanislavskianos”, nada podia ser menos metódico que esse ator sutil, observador e reprodutor (no seu atuar) dessas observações cotidianas, precisas como um laser.
De fato, Brando parecia se irritar com digressões. Sentia-se à vontade em repetir diversas vezes uma tomada até obter algo satisfatório – sendo às vezes, por esse aspecto, assim como pela sua capacidade de sempre saber se colocar dentro do quadro filmado, mais diretor que os próprios. Paulo Francis adorava repetir a história da filmagem da famosa cena de Sindicato de Ladrões (On the Waterfront), onde um desiludido Terry Malloy (Brando) desabafava toda a sua tristeza pelo fato da sua vida não ter seguido em frente, diante do homem responsável por isso: seu próprio irmão (Rod Steiger). Pois bem, Steiger, fazendo um bom filho-da-puta, tinha que ouvir tudo impassível, mas não conseguia e desabava a chorar, ou soluçar. E tome de gastar rolos de filme. Mas quem olha a cena hoje vê um dos grandes momentos do cinema. E esse é o ponto: se o exercício de definir é fútil, também não dá para escapar dos superlativos.
Stelllaaaaa!!!!!!
Whoopi Goldberg diz que toda vez que ouve Marlon gritando “Stellaaaaa!!!!” em Uma Rua Chamada Pecado (A Streetcar Named Desire), tem vontade de se levantar e gritar: “Estou aqui, meu amor!!!!” Animal selvagem e vital, que violenta a cunhada hipócrita que o humilha, quanto havia de Brando em Stanley Kowalski? Seria correto dizer “tudo”? Somos atraídos para as suas grandes criações como se ainda tivéssemos de resolver um mistério que persiste em nos desafiar. O que (ou quem) estamos vendo? Richard Schickel (o crítico de cinema da revista TIME) fez bem em notar que esse paradigma humano da palavra “ator” jamais interpretou (ou se o fez não deixou registro) o personagem mais importante de todos: Hamlet. Puxa! Mas por quê? Imaginem um enigma como Hamlet feito por um enigma tão grande quanto ele. Afinal, sua tragédia real com os filhos foi capaz de rivalizar com qualquer papel existente. Lembro-me de uma piada (de mau gosto, sem dúvida) feita na semana em que Marlon seria chamado para prestar seu testemunho no julgamento do filho Christian: “Imagina que atuação não vai ser!” Pois bem, quantos estimulariam tal piada?
The Hollow Men
Geralmente as pessoas citam O Poderoso Chefão (The Godfather - Part 1) quando querem se recordar de Marlon. É provável que Don Corleone seja sua personagem mais popular (talvez mais que Stanley Kowalski), mas para mim existem dois momentos que exemplificam de forma contundente o que se perdeu há poucos dias. O primeiro está em O Último Tango em Paris (The Last Tango in Paris), na cena do viúvo (Brando) diante do cadáver da sua esposa que o traía e humilhava das formas mais sutis e dolorosas possíveis (talvez a pior era ter um amante patético). Suas transformações sentimentais de ódio, tristeza, desespero, carinho, delírio etc são tão extraordinárias que chegam a ser inacreditáveis. Como um ator podia ser capaz disso? Gostaria de perguntar a Bertolucci quantas tomadas foram necessárias para se obter aquela cena magnífica.
O segundo momento é o Coronel Kurtz de Apocalypse Now. Um aterrorizante batráquio capaz de sentir o horror como algo físico e uma condição inescapável da condição humana – e ainda assim perguntar sobre paisagens banais de Toledo, como as gardênias ou Rio Ohio, lendo The Hollow Men, de T.S.Elliot (“We are the hollow men/ We are the stuffed men, / Leaning together headpiece filled with straw./ Alas! Our dried voices when we whisper together/ Are quiet and meaningless/ As wind in dried grass.) enquanto um alucinado Dennis Hopper fica tagarelando delírios sem sentido, tentando explicar o que seu ídolo (Kurtz) está fazendo (apenas lendo, bolas!) até receber um livro na cabeça, atirado por um furioso Coronel.
Um momento para a eternidade. O que pode explicar melhor nossa condição atual e o significado oculto da perda desse ator?
Primeiro respondam: O que Brando fazia? Atuar? Desculpem, mas é explicar muito pouco. Tivemos grandes atores como Jack Lemmon, Marcello Mastroianni, Vittorio Gassman etc. Temos ainda grandes atores antigos como Michael Caine e Peter O’Toole (os momentos de O’Toole no mediano Tróia valem o filme inteiro) e novos como Edward Norton e Sean Penn, mas mesmo esses não conseguiam (ou conseguem) esse algo indefinível de Brando. E o pior: hoje a própria idéia de “bem atuar”cada vez mais se dilui numa quase “mediocridade adequada”. Mesmo atores excepcionais como Jack Nicholson (O Iluminado), Robert De Niro (Taxi Driver) ou Al Pacino (O Poderoso Chefão - Partes I & II) já há algum tempo começaram a representar como quase auto-paródias cansadas, numa elusiva atitude que diz: “já que está tudo uma droga mesmo, e eu sei atuar ‘de verdade’, vocês não vão nem sentir a diferença”. E o pior é que eles têm razão.
A morte de Brando é um desses eventos que servem para lembrar que gigantes já andaram sobre a Terra. Quem é o seu substituto? Seus descendentes nós sabemos quem são: praticamente todos. Mas quem é o seu sucessor? Não há. Porque nós não estamos falando de talento aqui.
Nós estamos falando de gênio.
Pobres de nós! Onde estão os gênios do nosso tempo? Quem irá nos libertar desse gosto pré-fabricado e vendido três vezes no cartão? Se tudo já vem explicado no press release, então não se cansem pensando. E (ah!) tudo é digital (leia-se, tudo é falso ou passível de ser falsificado). Não vai demorar para termos novos filmes com um Brando tão jovem e bonito quanto o príncipe da T-shirt de Streetcar, totalmente recriado em computador. Só existe um problema:
Não será Brando.
Existe barulho demais hoje em dia, como o matraquear da personagem de Dennis Hopper em Apocalypse. Muito palavreado (som e fúria) na cabeça de um idiota, significando nada (sim, é Shakespeare! E daí?). Quem vai ter coragem de jogar um Eliott nesse ruído todo?
This was a man
Restam, aqui, dois epitáfios possíveis para Marlon Brando:
O primeiro para homenagear a sua forma de atuação original. Um trecho do roteiro de John Millius e Francis Ford Coppolla para Apocalypse Now, quando o Coronel Kurtz fala para o perplexo Tenente Willard (Martin Sheen) sobre o horror: “E foi aí que eu compreendi, como se tivesse levado um tiro, um tiro de uma bala de diamante, uma bala de diamante entrando pela minha testa! Aí eu pensei: Meu Deus! O gênio disso tudo! O gênio! A vontade de poder fazer isso! Perfeito, genuíno, completo, cristalino, puro!”
Uma descrição perfeita para o que esse ator fazia na tela.
O segundo epitáfio serve para o próprio Brando. Palavras ditas, novamente, por ele mesmo quando interpretou Antonio na versão cinematográfica de 1953 para Júlio César (sim, é Shakespeare também! Algum problema?), diante do corpo morto de Brutus (James Mason):
– Foi o mais nobre dos romanos. Todos os outros conspiradores realizaram o atentado por inveja a César. Mas Brutus apenas foi levado a fazer o que fez por uma idéia honesta e pelo bem de todos. Era de vida tranqüila, e os elementos de tal modo nele vieram a se unir, que a natureza podia levantar-se e proclamar ao mundo inteiro: “Eis aqui, de fato, um homem!”
Mais uma tomada?
Texto publicado originalmente na newsletter pessoal do autor, The Bystander