A VISITA
Michael Madsen, um dos mais interessantes documentaristas em atividade (Into Eternity, Cathedrals of Culture), propõe em A Visita um documentário de ficção futurista. Convidou cientistas, juristas, autoridades militares e técnicos envolvidos com pesquisa sobre contatos alienígenas para simularem as providências e os diálogos que manteriam com eventuais visitantes extra-terrestres. Adicionou encenações típicas do gênero, como gente paralisada contemplando o alto ou correndo em busca de abrigo. Complementou com a suposta incursão de um voluntário à nave alienígena, representada por magníficos interiores de museus e bibliotecas.
O exercício acrescenta mais um tijolo na construção dos hibridismos entre ficção e documentário. Trata-se de um doc sobre fato que nunca aconteceu, ou seja, uma hipótese, aqui tratada como possibilidade real no futuro do subjuntivo. Os protagonistas são altas patentes da NASA, da ONU e dos governos americano e inglês. No entanto, a dramaturgia é toda baseada na simulação e na ideia de não vermos o visitante, mas apenas o que acontece(ria) com os terrestres ao seu redor.
Madsen coloca muita importância no estilo, que é onde reside a personalidade dos seus filmes, além dos temas especulativos. A Visita é composto de imagens assépticas, simétricas e um tanto oníricas. O movimento lento e permanente da câmera, o uso intensivo de slow motion, a edição cheia de surpresas e o desenho sonoro marcado por tensão e silêncios criam uma atmosfera intrigante, característica do thriller de suspense científico. Saí com a impressão de que o filme promete mais do que oferece, mas ainda assim sua originalidade me parece inconstestável.
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UM FILME DE CINEMA
Filmes sobre o próprio cinema constituem um gênero em si, que atravessa a ficção e o documentário. Muitos deles não passam de ruminações em torno de obviedades sobre o fascínio e a linguagem do cinema. Walter Carvalho driblou esse risco com a inteligência que vem caracterizando seus trabalhos de diretor. Um Filme de Cinema é simples em sua proposta: grandes cineastas falando de cinema, filmados em cenários ou em estilos que se refiram a seus filmes, e cenas de obras que ilustrem as questões abordadas. É sofisticado, porém, na pauta colocada diante dos entrevistados e na maneira como as ideias evoluem na arquitetura do documentário.
Béla Tarr (foto acima), por exemplo, aparece em película preto e branco a bordo de sua velha e ainda ativa moviola, enquanto Ken Loach é visitado no recesso de um pub britânico. Karim Aïnouz está no meio de uma locação de O Céu de Suely, Ruy Guerra conversa em uma de O Veneno da Madrugada e Hector Babenco numa de Carandiru. O super elenco inclui ainda Jia Zhang-ke, Andrzej Wajda, Ashgar Farhadi, Gus Van Sant, Julio Bressane, Lucrécia Martel e José Padilha. Eles foram entrevistados em situações diversas desde 2002.
Walter lhes endereçou perguntas específicas sobre a obra de cada um e outras gerais sobre a fenomenologia do cinema; maneiras de tratar o tempo, o ritmo e o som; autoria e relações com a tecnologia e o mercado. Algumas indagações suscitaram respostas diversificadas, às vezes antípodas, como a clássica “Por que você faz cinema? ou “Você faz os filmes ou são os filmes que fazem você?”. Outras serviam para dividir os entrevistados entre os mais “filosóficos” e os adeptos da “simplicidade”. No final da sessão a que assisti, ouvi várias pessoas mencionarem a expressão “aula de cinema”, mas é preciso enfatizar que nada ali se aparenta com uma aula. São reflexões pessoais, não didáticas, com frequência brilhantes, que resultam numa espécie de conversa coletiva a que assistimos com imenso prazer.
A paixão pelo cinema, que para a maioria de nós começa na infância, é representada ao longo do filme pelo deslumbramento do menino de Cinema Paradiso. Walter incorre num pequeno desequilíbrio na harmoniosa estrutura quando faz uma incursão à cidadezinha italiana onde Tornatore rodou seu clássico e encontra não só o ex-menino Salvatore Cascio como alguns coadjuvantes. Esse curta-dentro-do-filme se alonga além do conveniente, não se afirma como olhar pessoal e parece sobremesa doce demais para uma refeição de gourmet.
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A NOITE CHEGARÁ
Quem viu, viu. O Rio de Janeiro só teve direito a uma sessão de A Noite Chegará, um dos documentos mais impressionantes sobre a indústria da morte levada a cabo pelos nazistas na II Guerra Mundial. Não que já não soubéssemos de tudo aquilo. Não que já não tivéssemos visto muitas daquelas imagens. Mas elas apareciam sempre (a exemplo dos curtas Death Mills, de Billy Wilder, e Nuit et Brouillard, de Alain Resnais) como ilustrações de um discurso contra o genocídio e a desumanização. Aqui as imagens atingem nossas retinas apenas como o que são: pilhas e mares de cadáveres sendo carregados e atirados em gigantescas valas comuns, esqueletos queimados ainda dentro dos fornos crematórios, moribundos que quase não se distinguem dos mortos ao seu redor, montanhas de pertences e partes de corpos arrancados de seus donos. Poucas coisas justificariam mais o adjetivo de dantesco.
Andre Singer fez um documentário sobre outro documentário. German Concentration Camps Factual Survey foi preparado na Inglaterra entre 1944 e 1946, à medida que as tropas aliadas avançavam pela Alemanha e liberavam campos como Bergen-Belsen, Auschwitz, Buchenwald e Dachau. Oficiais cinegrafistas ocupavam-se de registrar o horror encontrado, assim como filmar os sobreviventes em mórbidos cortejos entre as cercas de arame farpado do campo. Tudo serviria como evidências do genocídio nazista num filme coordenado por Sidney Bernstein com participação de Alfred Hitchcock no roteiro final.
Contudo, as injunções geopolíticas que se seguiram à guerra determinaram que o projeto fosse arquivado. A Inglaterra temia o crescimento do sionismo e tentava poupar a Alemanha como possível aliado na Guerra Fria. O material seria usado em outras produções e como provas do Holocausto nos julgamentos dos nazistas. Só recentemente seria retomado na íntegra pelo Imperial War Museum e daria origem ao telefilme Memory of the Camps. Toda essa história é contada neste A Noite Chegará. Alguns sobreviventes que aparecem nos filmes da época relembram hoje o pesadelo dos campos e a alegria de ver os aliados chegarem com a salvação. Branko Lustig, produtor de A Lista de Schindler, recorda-se que, ainda menino prisioneiro de Bergen-Belsen, achou que estava literalmente morrendo e chegando ao céu ao ouvir as gaitas dos soldados escoceses ecoando do lado de fora do barracão.
Cinegrafistas comentam como o estilo de filmagem devia ser sóbrio e em planos longos, de modo a não permitir qualquer acusação de falsificação. O montador do filme fala do horror diante das imagens que chegavam à moviola, especialmente enquanto estavam no negativo. O processo de reumanização dos sobreviventes é uma das partes mais comoventes do filme, ao passo que a assistência e destinação de tantos milhares de pessoas representavam um problema de monta para os países aliados. Daí surgiria a ideia de retorno à Palestina e a criação do Estado de Israel.
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EU SOU CARLOS IMPERIAL
"Intelectual não come ninguém", diz Imperial já na primeira cena desse perfil coletado por Ricardo Calil e Renato Terra. É uma declaração de princípios que ele levaria ao pé da letra numa vida de produtor musical, compositor, jornalista, cineasta, apresentador de TV e abatedor de "lebres" em escala industrial. O documentário reúne depoimentos alheios, entrevistas do próprio e cenas de arquivo para surfar na história de Carlos Imperial, o cafajeste careta.
Embora mostre Roberto Carlos reconhecendo sua dívida para com o "bicho" que o levou para a CBS no início da carreira e cite outras estrelas beneficiadas pela argúcia marqueteira de Imperial, o documentário se dedica principalmente a recolher casos de pilantragem em várias frentes: músicas roubadas, mentiras plantadas na imprensa, estratagemas em busca de sucesso, surubas, exploração de menores, mistificações políticas. Imperial foi talvez o primeiro cafajeste midiático brasileiro. Fez da mídia o seu circo particular e de sua própria imagem um caleidoscópio de percepções contraditórias. Não é de estranhar que parceiros, amigos e mesmo parentes falem dele com um misto de admiração e repulsa, gratidão e queixa.
Mais que tudo, o filme descortina um mundo que praticamente não existe mais. Um mundo em que o machismo ostensivo era tolerado como graça moderninha, a fraude aceita como parte do sistema e a desonestidade podia até render elogios se viesse simpática e descontraída. De alguma forma, Imperial foi a cara do Rio numa certa época. Hoje e sempre, motivo de riso e de vergonha.
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GERALDINOS
Prosseguindo no tema da vinculação entre futebol e política (Democracia em Preto e Branco), Pedro Asbeg se volta agora para a extinção da geral do Maracanã em 2005. O filme, dirigido em parceria com Renato Martins, começa como uma evocação nostálgica dos tempos em que o torcedor de muita paixão e pouco dinheiro assistia ao jogo em pé, bem pertinho do gramado, com a euforia e o sofrimento elevados ao cubo. Era uma festa de cantos, palavrões, lágrimas, danças malucas, fantasias e máscaras que o estádio viveu durante 55 anos.
Vemos isso através de imagens colhidas pelos próprios diretores e colaboradores em 2005, por ocasião dos 10 últimos jogos com geral, destacando-se o último Fla-Flu, além de cenas de arquivo de outras épocas. Lá estão figuras míticas como a Vovó Tricolor, o Índio da Geral e o Mister M, algumas delas estimuladas nos últimos tempos pela vaidade diante das transmissões de TV. Mas isso o filme não diz, pois não cabe nele discutir a geral, mas apenas louvá-la. E criticar sua eliminação no bojo das grandes reformas recentes do Maracanã.
A partir de certo ponto, Geraldinos vira uma tribuna para Marcelo Freixo, Romário e outros investirem contra – ou apenas lamentarem – a privatização, elitização e camarotização do estádio como parte do que Freixo define como "derrota de um projeto de cidade". Imagens da maquete eletrônica do novo Maracanã são usadas com astúcia para sugerir o ambiente asséptico e pequeno burguês que resultou das mudanças, enquanto o povão foi expulso para supostamente aumentar o lucro das transmissões de pay-per-view.
O "outro lado" é representado apenas por declarações sem viço (e quase culpadas) de um gerente do consórcio empresarial. Teria sido melhor se o filme abdicasse completamente de parecer jornalístico e assumisse integralmente sua pauta crítica. Ainda assim, Asbeg e Martins deixam bem clara sua posição e fazem sugestivo retrato póstumo de um estado de espírito que, no Brasil como no mundo, vai virando somente lembrança.
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JACI - SETE PECADOS DE UMA OBRA AMAZÔNICA
Uma das grandes obras hidrelétricas em curso no Norte do país é a usina de Jirau, no Rio Madeira, em Rondônia. A construção já foi objeto de polêmicas e interrupções por motivos de impacto ambiental, riscos para a população indígena e questões trabalhistas. Este documentário, ambientado no distrito-base de Jaci-Paraná, faz a crônica de alguma dessas questões com múltipla participação dos operários.
Boa parte do material, ou pelo menos suas porções mais dramáticas, foi registrada por trabalhadores com seus celulares. Isso aponta uma nova fronteira na realização de documentários sobre o mundo do trabalho - coisa impensável para Vladimir Carvalho quando filmou Conterrâneos Velhos de Guerra, filme que pode sugerir uma certa paternidade para Jaci. São deles as imagens de acidentados, das condições de trabalho no alto dos andaimes monumentais e principalmente do grande motim de 2011, quando operários revoltados contra a falta de segurança e assistência foram reprimidos pela polícia e incendiaram ônibus, carros e alojamentos.
O filme procura cobrir as diversas pautas com uma estrutura em módulos e ouvindo vozes representativas dos vários interesses em jogo. Volta-se também para o dia-a-dia dos trabalhadores naquela espécie de colônia temporária, enquanto não debandam para Belo Monte. O lazer e os aspectos afetivos ocupam um espaço considerável, respondendo inclusive pelo que a mim pareceu o maior deslize: a ênfase nas lágrimas de uma "mulher de bar" que fecha o filme em tom muito destoante do caminho percorrido até então. Minha irmã, que assistia comigo, reprovou a forma, a seu ver estereotipada, como a câmera enquadra o corpo das mulheres. Isso, porém, não desabona o trabalho de Caio Cavechini e Carlos Juliano Barros, seguindo-se ao impactante Carne e Osso, na atualização do documentário brasileiro sobre dramas do trabalho extremo.
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NA ESTRADA COM SÓCRATES
A honestidade política de Daniel Cohn-Bendit merecia um prêmio especial do É Tudo Verdade. Velho admirador do Brasil e do futebol, o antigo Dani Le Rouge, que hoje se define como “social-ecologista”, passou a Copa do Mundo de 2014 percorrendo o país numa van decorada (por um grafiteiro de favela carioca) em homenagem ao jogador Sócrates (1954-2011), seu amigo desde os tempos da Democracia Corinthiana, nos anos 1980. Queria investigar áreas de intercessão do futebol com a política no Brasil contemporâneo, assim como captar o sentimento dos brasileiros depois de 12 anos de governo do PT.
Ele não esconde que veio com algumas ideias preconcebidas, alimentadas pelas manifestações de 2013, e uma impressão de desapontamento pela experiência esquerdista vivida no país. Com ele ao volante, seu road-movie sai do Rio em direção a São Paulo, vai a Brasília e à Bahia antes de retornar ao ponto de partida. No trajeto, junta-se ao povo nos sofrimentos de cada jogo do Brasil e colhe depoimentos que não confirmam unanimemente a sua pauta inicial. A indignação de muitos contra a submissão do Brasil ao padrão Fifa comprova que política e futebol nunca deixaram de bater bola em algum nível. Mas o balanço das conversas vai fazer Dani reavaliar suas suspeitas diante da complexidade do que encontra. Em lugar do caos previsto pelos jornais europeus, ele vê uma Copa impecável e uma nação praticamente inteira torcendo por sua seleção.
Dani ouve tanto as ponderações de Juca Kfouri sobre a “crise do sucesso” que explica os protestos de 2013 quanto a militante do MST que afirma dedicar sua vida ao socialismo. Recebe uma aula de Gilberto Gil sobre “as várias realidades simultâneas” e encara os maus bofes de um pai de santo baiano que torcia pela Alemanha para fazer “o povo acordar”. Deixa transparecer certa decepção com Alfredo Sirkis, o guevariano de antes, defendendo o pragmatismo dentro do terno de deputado. Sai em busca do menino guarani que estampou uma faixa pedindo demarcação na festa de abertura da Copa e teve sua imagem censurada pela Fifa. Testemunha embaraçosas interações de Gil com populares nas ruas de Salvador a caminho do Farol da Barra, onde vai cantar Meio de Campo para Dani ouvir.
Existe ali, enfim, um caleidoscópio de impressões que emociona o velho combatente e, para nós, sintetiza todo um estado de coisas através do poder de síntese do olhar estrangeiro. Que ele conclua sua viagem mais esclarecido sobre as pequenas utopias cotidianas que mobilizam os brasileiros, em substituição da grande utopia revolucionária de 1968, é prova de que chegou aberto para compreender de fato. A simpatia de sua abordagem é muito bem servida pelos diretores Niko Apel e Ludi Boeken. Eles fizeram uma sugestiva captação de detalhes e souberam minimizar os episódios menos produtivos. A meu ver, nossas contradições e impasses estão bem representados.
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A HORA DO CHÁ
Os prêmios já recebidos por esse documentário chileno indicam que eu devo estar errado em meu desapontamento. A diretora Maite Alberdi compila momentos de vários encontros, num período de três anos, de um grupo de senhoras que se reúnem há mais de 60, desde o fim do colégio. A morte foi reduzindo as comensais até restarem apenas quatro para se deliciarem com as conversas, os doces, as tortas e as cantigas de cada mês.
E do que falam? Da evolução dos costumes, de casamento, viuvez, envelhecimento, operações de catarata, da morte, etc. Quase todas católicas conservadoras, não são desprovidas de simpatia nem de humor, mas seus assuntos são estreitos e, no ritmo da conversação descontraída, rapidamente se dissolvem como açúcar no chá. As questões importantes da história do Chile não parecem ter repercutido nelas. Não há tampouco qualquer tentativa de ampliar a reflexão para dimensões inesperadas.
A filmagem predominantemente em closes procura criar uma atmosfera de proximidade e intimidade, mas acaba caindo num certo virtuosismo de publicidade gastronômica. Entre a resignação bem-humorada e a melancolia das personagens, o filme adota para si as limitações da vida ordinária.
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CARTUNISTAS - SOLDADOS DE INFANTARIA DA DEMOCRACIA
Se demorasse um pouco mais para fechar seu filme, Stéphanie Valloatto teria um epílogo trágico para acrescentar com o atentado à redação da Charlie Hebdo. No filme, 12 cartunistas de 12 países expressam seus pontos de vista sobre o ofício, seus objetivos e seus riscos. Um ofício no qual, segundo eles, não cabem o otimismo ou a ingenuidade. Ser cartunista é ser oposição, o que, em si, já constitui um desafio e uma limitação. Todos os doze, à exceção do americano Danziger, se opõem ao governo vigente em seus países. Até o cartunista palestino condena os métodos do Hamas, enquanto o israelense deplora a direita no poder em Israel.
Quando o jornal conservador dinamarquês Jyllands-Posten publicou uma série de charges de Maomé em 2005 e seus autores foram ameaçados de morte por radicais islâmicos, o francês Plantu, cartunista do Le Monde, criou na ONU a associação Cartunistas pela Paz. Plantu já promovia uma espécie de ONU dos cartunistas numa página semanal do Le Monde, publicando trabalhos de profissionais de várias partes do mundo sobre as questões de cada lugar. Ele atua no filme como elo de ligação entre vários colegas, participando de alguns encontros interessantes.
Mas o dispositivo básico do filme é a entrevista individual, quase sempre ilustrada por charges. Presidentes e políticos são os alvos mais frequentes, e o episódio de Maomé não recebe mais que poucos minutos de atenção. O bordão mais repetido é a defesa da liberdade e da democracia, uma luta diária para esses combatentes do traço. O filme, produzido pelo famoso cineasta de origem romena Radu Milhaeanu (O Trem da Vida, O Concerto), tem uma fatura previsível, na medida em que se concentra no elogio simpático e no papel heroico (às vezes mártir) dos cartunistas. Discussões mais complexas sobre as relações entre ética, humor e preconceito ficam banidas pela simples acusação de correção política. Ou seja, um traço simplificador.
P.S. Não é fácil dar conta das legendas, da leitura das charges e de eventuais traduções dos textos das charges no breve tempo de exposição. Faz falta um botão de pausa.
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CHAMADA DE EMERGÊNCIA
Num estilo próximo ao de Errol Morris, com reencenações estilizadas e paixão pelos detalhes, esse filme faz a crônica de um crime que há nove anos desafia a inteligência judicial da Finlândia. Em 1.12.2006, um funcionário de recursos humanos foi morto a facadas em sua casa. Numa ligação para a polícia, sua mulher, também ferida, implorava por socorro. Três anos depois, ela era presa sob suspeita de autoria do crime. Desde então, houve 10 julgamentos do seu caso, seis dos quais apontaram sua inocência. O último deles foi em fevereiro deste ano, já fora do espectro coberto pelo filme.
A personalidade opaca de Anneli Auler, que não transmite emoções, é mais um enigma para os investigadores. O caso ganhou foros de escândalo quando pesaram sobre ela acusações de crime sexual, tortura dos filhos e prática de rituais satânicos, tudo supostamente feito na presença de um detetive que se infiltrou em sua vida privada. Nada, porém, ficou suficientemente provado, ainda que não descartado judicialmente.
O veterano diretor Pekka Lehto demonstra afinco no acompanhamento do processo e na reunião de depoimentos policiais, entrevistas de Anneli na prisão, escutas telefônicas, análises da chamada de emergência, teste de mentira e todo o aparato utilizado nas investigações. O que não ajuda a alçar seu filme para além da cobertura eficiente de um fait divers sem maiores significados.
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CAMINHO DE VOLTA
Se sair do país para viver fora pode ser um passo complicado, não é menos difícil voltar depois de mais de 20 anos. O novo documentário de José Joffily e Pedro Rossi examina dois casos do gênero. Diferentes entre si em quase tudo, são igualmente dramáticos quando se trata de desfazer laços e refazer a vida.
O fotógrafo André Câmara vive em Londres há 27 anos, onde ganhou prêmios, casou-se duas vezes, teve quatro filhos e agora passa por um período de dificuldades profissionais. O fato de ter uma perna mecânica parece não afetar muito sua disposição atlética e psicológica, mas a falta de emprego põe em risco sua situação financeira e afetiva. A mudança para o Brasil levanta uma série de questões para ele e sua família binacional. Joffily e Rossi usam o método da não intervenção para filmar o cotidiano de André e capta situações agudas entre ele e sua companheira atual.
Já em Nova Jersey, EUA, a octogenária Maria do Socorro Monteiro prepara-se para se despedir do filho, com quem mora há 24 anos, e retornar ao Brasil. Ele é porteiro de edifício e aguarda a cidadania americana, assim como a ida da mulher para juntar-se a ele na casa que ainda dividia com a mãe. O caminho de volta, para Maria do Socorro, começa com a decisão dolorosa de deixar o filho e o cenário a que ela se afeiçoou. O filme, para apreender o jeito mais simples e brincalhão dos dois, se permite uma interação ligeiramente maior com os personagens. O resultado é de uma grande simpatia.
A perspicácia de Caminho de Volta está em ser revelador com sutileza e penetrante sem ser invasivo. Entre as muitas observações que colhem daquelas pessoas e do momento especial que atravessam (voltar ou não voltar?), os diretores deixam entrever duas formas distintas de se viver o exílio: integrando-se quase plenamente, como André na Inglaterra, ou mantendo-se dentro da bolha latina, como Maria do Socorro e seu filho nos EUA. Sobre o Brasil que cada um reencontrará, fica apenas a sugestão de que é muito diferente daquele que deixaram.
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SEUS PAIS VOLTARÃO
Um dia depois do Natal de 1983, um voo da Iberia fretado pelo Partido Socialista Espanhol pousou em Montevidéu levando 153 crianças de várias cidades europeias para conhecerem seus parentes. Eram filhos de exilados políticos que tomavam contato, alguns pela primeira vez, com a terra dos seus pais. Uns haviam nascido já no exílio, outros na prisão ou no calor da resistência contra a ditadura militar. Foi um momento de enorme emoção no país e de profundo significado para os pequenos "filhos do exílio".
O documentário de Pablo Martínez Pessi recolhe memórias e reflexos do episódio na consciência de seis daqueles passageiros. São lembranças de excitação e desconforto, ternura e estranhamento. Uma criança arrancada do seu meio para o exílio tem tumultuada a construção da própria identidade. Hoje eles continuam vivendo na Europa e têm dificuldade em formar uma imagem do Uruguai e conciliar seus sentimentos de pertencimento. A ideia de família tornou-se coisa difusa, um tanto perdida entre a falta de intimidade e a queixa por seus pais terem escolhido a luta política em detrimento da proteção aos filhos. Aquela viagem de 1983, enfim, não foram exatamente umas férias.
O foco de interesse do filme é bem concentrado nas experiências individuais, deixando de lado, mais do que deveria, a logística da viagem e seu impacto sobre a política do país. Naquela época havia cerca de meio milhão de uruguaios vivendo no exílio. A ênfase nas considerações pessoais e nas cenas familiares retira bastante do relevo que o filme poderia ter se abrisse mais o arco da pesquisa sobre o momento histórico.
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A PAIXÃO DE JL
Que a obra de José Leonilson (1957-1993) era extremamente pessoal a gente sempre soube. Mas é o audiovisual póstumo que nos tem informado sobre o seu caráter de diário mesmo do artista, repercussão direta de seus anseios, encontros, dilemas e sonhos de rapaz romântico e carente.
As fitas cassete de seu diário oral, iniciado em 1990, formam a base de A Paixão de JL. Karen Harley já havia feito o mesmo no belíssimo vídeo de curta metragem O Oceano Inteiro para Nadar, em 1997. Para cada instante confessional, Karen encontrou a pintura, o bordado ou o detalhe de obra adequado, desvendando universos de significação completamente límpidos, imediatos e reveladores.
A maior diferença, para este longa de Nader, além da duração, é a quase total concentração do filme na vida amorosa e na aproximação da morte de Leonilson. Embora passe aqui e ali por assuntos outros, Nader privilegiou os comentários sobre a solidão e os "meninos lindos" que JL conhecia e pelos quais rapidamente se apaixonava; as reflexões sobre a condição de gay e a preocupação com um eventual desapontamento dos pais; a descoberta do HIV positivo, o avanço da doença sobre seu corpo e até as alucinações do período terminal.
Como fizera antes com Waly Salomão em Pan Cinema Permanente, Nader se deixa contaminar pelo personagem que evoca postumamente. O que ele faz, nesse caso, é uma delicada costura intertextual do áudio-diário com as obras que tematizam sutilmente cada sensação ou acontecimento, trechos de filmes citados por Leonilson e imagens de atualidades que conectam a experiência pessoal com a experiência do mundo.
Se não tem a originalidade de uma revelação na filmografia brasileira, A Paixão de JL amplia a nossa imersão, em chave doce e triste, no universo de um artista intimista a não mais poder.
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SEGUINDO NAZARIN: O ECO DE UMA TERRA EM OUTRA TERRA
Em 2009, uma exposição no México revelou a faceta de fotógrafo de Luis Buñuel durante a escolha de locações de 12 de seus filmes mexicanos. O volume e a minúcia desse trabalho lhe permitia rodar os filmes em tempo curto, já que a maioria das cenas estava pré-decupada em fotos. Seguindo Nazarin utiliza as fotos de locações de Nazarin (cerca de 1 mil foram encontradas) para recuperar a história de sua produção, em 1958. Vale-se também das belíssimas fotos da filmagem, realizadas por Manuel Alvarez Bravo, um mestre da fotografia mexicana.
O diretor Javier Espada refaz o que aparentemente foi o percurso de Buñuel da Cidade do México a longínquas cidades e bosques do interior do país. Mostra, por exemplo, como o "Bruxo" às vezes montava cidades diferentes como campo e contracampo de uma mesma cena. Através de sobreposições de fotos e trechos do filme, comprova a exatidão com que Buñuel planejava suas tomadas. Num recurso um tanto ingênuo e às vezes desnecessário, ele abusa nas fusões de fotos de 1958 com imagens atuais do mesmo enquadramento.
O simpático dossiê é complementado por alguns poucos áudios de Buñuel, depoimentos sobre as origens literárias de sua obra, reminiscências de atores (com uma canja da veneranda Silvia Pinal, estrela de Viridiana) e do filho Juan Luis Buñuel – que acompanhou as filmagens aos 24 anos – e ainda louvores de Arturo Ripstein, Carlos Saura, Carlos Reygadas e Jean-Claude Carrière. Mas o grande destaque do documentário, além da revelação do tesouro fotográfico de Buñuel, é o som dos famosos Tambores de Calanda, objeto de admiração obssessiva que ele levou da Espanha natal para a sua obra mexicana. A tese, superficialmente apresentada, é que Buñuel levou muito mais do que isso de uma terra para a outra.
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INVASÃO
Fico feliz pelo festival ter trazido este filme que considero uma autêntica obra-prima do documentário latino-americano contemporâneo. Como jurado do Prêmio Fênix de cinema latino-americano, votei nele para melhor doc. Com um extremo senso de oportunidade e de maneira inventiva, o diretor Abner Benaim coleta memórias de panamenhos sobre a invasão do país pelos EUA em dezembro de 1989.
Encontra de tudo: os ainda hoje indignados, os desapontados, os aliviados com a invasão, os aproveitadores. Encontra gente que foi ferida ou se salvou milagrosamente, como a mulher que teve sua sala atingida por um míssil; gente que ajudou a saquear o palácio presidencial, que se valeu da oportunidade para fugir do presídio, que ajudou os paraquedistas americanos a saírem de um lamaçal ou que ganhou uns trocados lavando os tanques inimigos. Há também o cantor que namorava uma secretária do presidente Manuel Noriega e deu fuga a ele até entrar na embaixada do Vaticano.
A questão central é discutir se a invasão e a renúncia de Noriega serão coisas do passado ou ainda convém relembrar. Um curiosíssimo filme-processo, que, enquanto documenta, expõe o seu método e arregimenta figurantes para reencenar momentos simbólicos do evento de 1989. No clímax inesquecível, uma caminhonete carregada de "mortos" entra na Cidade do Panamá atual.
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SETE VISITAS
O documentário de entrevistas elege o entrevistado como foco, enquanto o entrevistador permanece na opacidade como agente do processo. Em Sete Visitas, Douglas Duarte (Personal Che) faz uma experiência muito frutífera ao relativizar esse procedimento, colocando também o entrevistador no foco de interesse. As coisas ganham ainda maior originalidade por se tratar de uma única entrevistada, a operária, ex-camponesa e ex-garota de programa Silvana Socorro de Almeida, que conversa com sete entrevistadores. Seis deles exercem a entrevista como parte de seu ofício: uma escritora, o cineasta Eduardo Coutinho (provavelmente em sua última gravação como entrevistador), uma dupla de terapeutas da técnica Fogo Sagrado, um psicanalista, um juiz de Direito e o próprio Douglas através dos demais. A sétima é a filha de Silvana, que encerra o filme com uma sessão de confissões familiares.
Silvana é personagem coutiniana por excelência, com uma vida repleta de fatos dramáticos e curiosos, além de um jeito cativante de contá-los. Mas aqui ela se transforma também no elemento catalisador para revelar seus diversos interlocutores. A edição em campo e contracampo frontais equaliza a participação de cada dupla, desvelando o comportamento do entrevistador – até porque Silvana tem a função de perguntar de volta e estabelecer, na verdade, uma entrevista bilateral. A maneira límpida e transparente como ela responde e reage às diferentes abordagens contribui para fazer dos encontros peças dramáticas cheias de vida e surpresas.
Desde que Eduardo Coutinho redefiniu e tornou complexo o papel da entrevista com pessoas comuns, o documentário brasileiro tem expandido o sentido dessa ferramenta de muitas maneiras. Sete Visitas é mais um avanço nesse caminho. Evidencia a atuação do entrevistado como ator de si mesmo quando o submete a inquirições de diversas naturezas. E situa mais claramente o entrevistador como alguém cujos interesses e condutas são decisivos no resultado de um documentário.
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CHAMAS DE NITRATO
René Falconetti, a atriz francesa imortalizada como a Joana D'Arc de Dreyer, teve uma carreira sui generis. Bancada pelo marido e mecenas, um industrial que teria idade para ser seu avô, ela firmou-se no teatro popular e como modelo de moda e publicidade. Foi levada para o cinema por Dreyer, ocupando o lugar destinado inicialmente a Lilian Gish no grande clássico que acabaria sendo o seu único filme. Depois disso, voltou aos palcos para um período de gradual decadência, acabando por morrer pobre e esquecida, aos 46 anos, em Buenos Aires.
Esta pode ser a sinopse de Chamas de Nitrato, coprodução de Noruega e Argentina dirigida por Mirko Stopar, argentino baseado em Oslo. É natural que boa parte do filme se concentre na famosa relação entre Dreyer e Falconetti, quando o diretor lançou mão de recursos supostamente cruéis para obter a performance desejada. Joana D'Arc seria mais uma das muitas mulheres martirizadas em filmes de Dreyer. Especula-se que o destino trágico da mãe do cineasta, que o entregou para adoção logo ao nascer, estaria na origem dessa obsessão.
O filme usa vários clichês de biografia documental, exceto o mais comum: talking heads. A pesquisa de imagens é a virtude mais evidente, já que a narrativa se baseia unicamente numa trama tecida com falsos cinejornais, materiais de arquivo, cenas de filmes de Dreyer e de películas argentinas, encenações com atores (também argentinos) e gravações de áudio. Tudo isso para suprir a virtual inexistência de registros sobre a vida de Falconetti. Sua estada provisória no Brasil em 1942, antes de se radicar na Argentina, é ilustrada por trechos de Limite, de Mario Peixoto, que consta ter sido visto por ela numa sessão ao lado de Orson Welles no Rio.
Existe um paralelo entre o ostracismo da atriz e o insucesso do filme, cujos negativos foram perdidos em dois incêndios. A recuperação posterior e a consagração de A Paixão de Joana D'Arc, no entanto, não chegaram a beneficiar sua estrela. Chamas de Nitrato cumpre seu objetivo nos limites de um bom extra de DVD.
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COMO CHEIRAR UMA ROSA: UMA VISITA COM RICKY LEACOCK À NORMANDIA
Em 2000, o documentarista Les Blank visitou o colega Richard Leacock em sua fazenda na Normandia para dele colher um perfil biográfico e intimista. Leacock viria a morrer em 2011 e Les Blank, em 2013. Só depois disso o material veio à tona, por obra da viúva de Les Blank, Gina Leibrecht. Como Cheirar uma Rosa: Uma Visita com Ricky Leacock na Normandia compõe-se de cenas de uma conversa amiga, em que Leacock aparece feliz com sua mulher, Valerie Lalonde, fazendo a segunda coisa que mais gostava na vida: cozinhar.
Lá está o casal escolhendo legumes na feira, preparando bouillons e pot au feux, ou então passeando com o cachorro na praia em imagens que lembram muito Um Homem, uma Mulher, de Lelouch, filme que Leacock provavelmente detestava. Na hora de falar de sua vida e carreira, ele destaca seu amor pelo documentário, mais especialmente pela possibilidade de passar ao espectador "a sensação de estar lá", ambição maior do cinema direto americano. Recorda lições de Flaherty, passa em revista os trabalhos com Robert Drew e comenta seus próprios filmes. Do que fez sobre Leonard Bernstein em 1958 e 59 lamenta ter perdido os melhores momentos por falta de equipamento leve e fexível. Entre os filmes com trechos incluídos na edição está o seu primeiro, Canary Bananas (1935), um doc à moda antiga sobre o processamento industrial de bananas nas Ilhas Canárias, onde nasceu.
Com um bom humor contagiante, Leacock fala das três vidas que viveu: a "séria" da juventude, a dissoluta da meia-idade e a tranquila da maturidade ao lado de Valerie. Dos tempos de alcoólatra não parecia ter saudades. Apesar de alguns momentos de enigmática introspecção numa conversa perto do final, a imagem que ele passou ao amigo Les Blank era de um homem em paz consigo mesmo e satisfeito por, enfim, no meio digital, poder fazer seus filmes fora do sistema, longe da televisão e atendendo apenas a sua vontade. Coisa simples como cheirar uma rosa.
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CITIZENFOUR
Como exemplar cinematográfico, CitizenFour é bem mais modesto que Virunga, concorrente derrotado ao Oscar de documentário. No entanto, tem a virtude de captar um momento histórico na mais absoluta intimidade. Laura Poitras, documentarista investigativa vigiada de perto pelo governo americano desde 2006, já registrava atividades da NSA – National Security Agency desde sua construção, em 2011. Quando Edward Snowden decidiu denunciar o esquema de monitoramento mundial no qual trabalhava, em junho de 2013, escolheu Laura e o jornalista e advogado americano Glenn Greenwald como seus primeiros canais de divulgação. Assim é que a câmera de Laura se encontra no quarto de hotel de Snowden em Hong Kong antes mesmo de a "bomba" explodir.
Diante das lentes, Snowden explica suas razões políticas e morais, acusando Obama de ter descumprido sua promessa de não aumentar o poder do Estado sobre a privacidade dos cidadãos. O que vemos é um herói destemido e cool, que parece pouco nervoso mesmo nas horas decisivas de sair clandestinamente do hotel com rumo incerto depois de detonado o escândalo e revelada sua identidade. O acaso mostra que um alarme de incêndio, por exemplo, pode deixá-lo muito mais inquieto do que a possibilidade de ser caçado pela CIA e o FBI juntos.
Após a entrada de Snowden na clandestinidade, o filme prossegue na cobertura dos principais lances do caso, nos EUA, na Europa e também no Brasil, onde vive Glenn Greenwald. O clima é de thriller de espionagem, envolvendo mensagens criptografadas, senhas digitadas em baixo de panos e anotações secretas rasgadas logo depois de lidas. Nos créditos finais há um típico reconhecimento aos softwares e ferramentas de criptografia sem os quais "a realização deste filme não teria sido possível".
Mas o que distingue CitizenFour de outros doc-thrillers políticos recentes é, por um lado, o papel crucial da imprensa como intermediária e devedora de uma ética perante suas fontes, por mais enigmáticas que elas possam ser a princípio. Por outro lado, cabe destacar a discrição da realizadora. Laura Poitras não apela a qualquer truque de linguagem ou "reforço" de dramaticidade. A confiança no material e na oportunidade que vivenciou foi o grande trunfo para um filme simples, direto e ainda assim memorável.
Para quem está longe do festival e de alguma cópia legendada, o filme pode ser visto no original em inglês no site Thought Maybe
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ÚLTIMAS CONVERSAS
"Melhor não fazer", decreta Eduardo Coutinho numa conversa com sua montadora Jordana Berg (ela fora do quadro) na cena de abertura de Últimas Conversas. Como fazer um filme com jovens que ainda não viveram quase nada, não têm memória, são castrados pelos pais? "Não posso amá-los", explica. Logo em seguida, vamos saber que aquela gravação foi feita já no quarto dia de filmagens. Coutinho estava apenas usando o seu combustível habitual: o pessimismo trágico. "Ter fé é difícil", conclui, meditativo.
É esse combustível que norteia a maioria das entrevistas com meninos e meninas do estudo médio, ou seja, à beira de se despedir da adolescência. Sempre que pode, Coutinho os induz a uma reflexão sobre a descoberta da vida como uma selva, o espanto com o futuro, a presença sorrateira da morte. É natural, para nós espectadores, vermos tudo isso à luz do que viria acontecer com ele pouco tempo depois. Mas a verdade é que desde O Fim e o Princípio (2006) Coutinho vinha deixando um certo sentimento trágico instalar-se em cada um dos seus filmes.
O retrato de juventude que emerge daquela sala vazia de escola pública carioca, com personagens de classe humilde, é marcado pelos traumas do bullying, do preconceito ou do abuso sexual, por pais separados e ausência da figura paterna e por tudo o que caracteriza a adolescência, fase mais cruel das nossas vidas. Mas há também a contrapartida dos sonhos, das superações, do olhar lúdico para o mundo, do filosofar ingênuo que às vezes desemboca em sacadas da maior profundidade. Independente do contexto pós-filme, este é um dos trabalhos mais comoventes e divertidos da obra de Coutinho.
Ele mesmo, apesar dos resmungos na intimidade, soa extremamente confortável diante de seus jovens entrevistados. Ora sugere um avô xereteiro com suas perguntas exóticas, ora um idoso defasado que se atualiza com a garotada. Mostra-se curioso com celulares, diários, escritos e roupas da galera. Estimula as conversas com visível interesse e se entretém com sinceridade. É o resultado não só da faixa etária de seus interlocutores, como também de um progressivo relaxamento que Coutinho vinha se permitindo em seus últimos filmes.
Uma surpresa fica reservada para a última entrevista, quando o filme quebra seu padrão, tanto em relação à faixa etária quanto à classe social. Esse epílogo delicioso, que encerra a obra do mestre num tom angelical, deixa entrever o que poderia ser um futuro filme seu, impensável à primeira vista, mas quem sabe mais uma obra-prima.
Coutinho morreu poucos dias antes de iniciar a montagem, que afinal foi feita por Jordana Berg sob a supervisão do "terminador" João Moreira Salles. Foi João quem adotou o título de Últimas Conversas. Confesso que tenho dificuldade em assimilá-lo, pois me soa como um título sobreposto, mais ligado à circunstância póstuma que à obra. Além disso, do ponto de vista cronológico, a derradeira conversa de Coutinho como entrevistador de cinema seria gravada posteriormente por Douglas Duarte e está em Sete Visitas, longa integrante da competição do festival.
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O VIGÉSIMO
Desde 1996, o É Tudo Verdade vem atualizando o público brasileiro com as várias tendências do documentário nacional e internacional. Premiou algumas obras-primas e homenageou alguns dos maiores realizadores do meio. Mais importante que tudo, venceu uma inicial indiferença do público e da imprensa para com a "não ficção" e hoje conta com uma sólida inserção no calendário de festivais e também na televisão, através do programa semanal de Labaki no Canal Brasil. Essa trajetória coincidiu com a primavera do documentário no Brasil e no mundo, iniciada justamente nos anos 1990, e com o meu próprio interesse pelo estudo e acompanhamento da cena documental. Para mim, tudo isso acaba sendo uma coisa só.
Em sua 20ª edição, que começa hoje em São Paulo e amanhã (sexta-feira) no Rio, o festival comemora os 80 anos de Vladimir Carvalho – que lança novo livro –, homenageia o centenário de Orson Welles (foto no topo), faz uma retrospectiva de sucessos das edições anteriores e exibe cerca de 60 filmes novos em suas várias seções. A partir desse ano, os vencedores da competição de curtas ficam automaticamente qualificados para a disputa das indicações ao Oscar da categoria.
A conferência anual vai tratar das três efemérides citadas no parágrafo anterior. Caberá a mim a honrosa tarefa de dividir com Fernão Ramos uma mesa sobre "20 Anos de Documentário Brasileiro" no dia 15, em São Paulo.
Confira todos os detalhes e a programação no site do festival. Nos próximos dias, vamos publicar aqui as resenhas de alguns filmes. Acompanhem.