Nosso crítico em Cannes, Ricardo Cota, comenta filmes do 68º Festival
HOU HSIAO-HSIEN PARTE PARA A PALMA DE OURO
por Ricardo Cota
A capa do Liberation de sexta-feira foi taxativa: “The Assassin, Notre Palme D’Or”. E ponto final. Depois de 8 anos sem filmar, o tailandês Hou Hsiao-Hsien trouxe a Cannes aquele que é provavelmente o seu melhor filme, elaborado com rigor técnico, excelência pictórica e concisão narrativa, uma aula de mise-en-scène que representou o ponto fora da curva de um festival marcado pelo lugar-comum do tratamento cinematográfico.
The Assassin se passa no século IX, sob a dinastia Tang. Nie Yenniang (Shu Qi, espetacular) é a heroína que tem a missão de matar o primo TIan Ji’an (Chang Chen), a quem ela havia sido prometida em casamento quando criança. A dissidência entre as províncias separaram as famílias e Tian passa a ser o governador autoritário de Weibo, que Nie Yenniang deve combater.
Em suas entrevistas à imprensa internacional, Hsiao-Hsien procurou destacar a formação do seu olhar, influenciada por uma infância em que a contemplação da natureza de seu país natal foi fundamental. O cineasta afirmou que passava horas olhando o movimento das árvores, das nuvens, a imponência das montanhas e capturando o som ao redor.
The Assassin, para além da trama, narrada com enquadramentos fixos, longos planos-sequências que marcam até as cenas de luta, sem os habituais cortes obsessivos, é um filme em que a natureza está presente o tempo todo como elemento dramático. Mesmo nas sequências de interior, o vento embala véus e chamas de vela como uma respiração onipresente. O prólogo em preto e branco, uma homenagem do cineasta ao clássicos dos japoneses Mizogushi, Kurosawa e Yoshida, só contribui para que a exuberância cromática se sobreponha.
The Assassin é acima de tudo um espetáculo de cores, sejam elas as do próprio cenário natural ou dos figurinos magníficos. A encenação segue uma coreografia de gestos e olhares que transmitem os sentimentos dos personagens de forma mais intensa do que qualquer diálogo. Assim, a tensão da heroína entre seguir os princípios pacifistas do coração e matar o primo amado, cumprindo assim os desejos de guerra, está sempre por um fio tenso, num questionamento ético que se apura até a nobre conclusão deste filme em que Hou Hsiao-Hsien mostra que valeu esperar oito anos para afiar seu sabre cinematográfico.
Assim como o Liberation, a nossa Palma, do críticos.com, também é de Hou –Hsiao-Hsien.
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JIA ZHANG-KE LANÇA OLHAR SOBRE A CHINA CONTEMPORÂNEA E SORRENTINO SE EMBARALHA NA TEIA DO ESTETICISMO
por Ricardo Cota
Dois dos mais concorridos filmes da Mostra Competitiva foram exibidos em sequência no 68 Festival de Cannes: Mountains May Depart, de Jia Zhang-Ke, e Youth, de Paolo Sorrentino. O primeiro recebeu aplausos calorosos do público, já o segundo ficou nas palmas protocolares, que não esconderam certa frieza.
Mountains May Depart confirma Zhang-Ke como um dos mais expressivos cineastas contemporâneos. O filme fetichiza o número três. Trata de três tempos (1999, 2014 e 2025), relações sempre triangulares e ainda utiliza três formatos diferentes de tela, que vão se ampliando a cada temporada.
O ano de 1999 é o ponto de partida da trama, quando o triângulo se concentra basicamente entre a jovem Tao (Zhao Tao) e seus dois pretendentes, o ambicioso Jinsheng (Zhang Yi) e o proletário Liand (Liang Shingdong). Logo de início as cartas do drama social são lançadas, com Tao representando o presente dividido entre o arrivismo propulsionado pelo crescimento econômico e o conservadorismo arraigado numa visão provinciana. Tao opta pela promessa de felicidade do endinheirado Jinsheng, mas não a encontra.
Na segunda parte, em 2014, ela está divorciada e sem a guarda do filho, que vive em Shangai e irá visita-la em Fenyang, terra natal do diretor, apenas quando o avô morre. Forma-se então o triângulo entre Tao, o filho, batizado pelo pai comicamente de Zhang Dollar, e a mãe postiça. Esta sequer aparece no filme, sua presença é apenas identificada pela voz transmitida do Skype.
Finalmente chegamos em 2025, quando Dollar vai morar com o pai, então milionário, na Austrália. O último triângulo é formado por Dollar, seu pai e uma professora de inglês de meia idade, com quem o jovem passa a viver uma relação quase edipiana.
Nas três etapas, Zhang-Ke aborda o tema da mobilidade social, financeira e geográfica, da inconstância do amor, da fragmentação familiar, e aproveita ainda para cutucar as barreiras impostas pela tecnologia aos relacionamentos humanos. O futuro em Mountains May Depart não é totalmente pessimista, mas está condenado à dissolução da memória, substituída pelo Google, e ao esvaziamento de temas como a liberdade, definida de forma singular numa sequência memorável pelo pai de Dollar. O cinema de Zhang-Ke destaca-se assim por uma energia dramática e um interesse pelas mudanças em curso no mundo, algo que fez muita falta em Cannes 2015.
O outro filme, Youth, de Paolo Sorrentino, não correspondeu às expectativas de mais uma grande obra do vencedor do Oscar de Melhor Filme Estrangeiro por A Grande Beleza. Pelo contrário, Youth decepcionou por lembrar a cada momento o esteticismo dos tableaux vivantes que tanto agradam a perseguição de uma beleza absoluta por parte do diretor.
Dois velhos artistas, o cineasta Mick Boyle (Harvey Keitel) e o maestro aposentado Fred Ballinger (Michael Caine), passam alguns dias num spa de altíssimo nível em uma montanha na Suíça. Lá convivem com monges, atores de cinema e outros milionários em geral. Ambos são cínicos profissionais, que se divertem observando os outros hóspedes e fazendo comentários generalizantes sobre a juventude, a beleza e a saúde das respectivas próstatas. Ambos respondem pelos melhores momentos do filme, que infelizmente são entrecortados pelos planos mirabolantes de Sorrentino, que dessa vez ficaram apenas na intenção de acrescentar um significado a este filme belo porém oco.
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TODD HAYNES EM MAIS UMA INSERÇÃO EXITOSA NO MELODRAMA DE ÉPOCA E AS VAIAS, MERECIDAS, A GUS VAN SANT
Por Ricardo Cota
No mesmo anos de 1952, em que a Associação de Psiquiatras Americanos incluiu a homossexualidade entre as doenças mentais, Patricia Highsmith publicou seu segundo livro, The Price of Salt. Escrito obrigatoriamente sob pseudônimo, a obra, de traços autobiográficos, não chegou a ser proibida, mas foi editada por uma coleção de apelo quase pornográfico.
O contexto acima dá a dimensão do ambiente em que a trama de “Carol” se passa. Estamos na América do pós-guerra, em plena era do baby boom e da sacralização das normas tradicionais de constituição familiar. Nada muito diferente do espinhoso terreno por onde trafega o marido de “Longe do Paraíso”, do mesmo Todd Haynes, condenado a esconder suas opções sexuais.
Carol (Cate Blanchet, exuberante) é uma mulher atada a um casamento de fachada, que lhe proporcionou uma filha. Seu marido fecha os olhos para uma relação com uma antiga amiga de colégio mas não suporta a aproximação da esposa de Therese (Rooney Mara), balconista de uma loja de departamentos cujo sonho é vencer o medo e espanar a vida tacanha. O diagnóstico é um só: “doença”. A consequência será uma perseguição desleal do marido que levará o filme a um clímax arrebatador, com direito a poderoso solo de Blanchet.
Grande parte de “Carol” se detém no processo de sedução entre as duas protagonistas, que só se consuma, sexualmente, depois de uma hora de projeção. É uma cena filmada com a elegância imposta pelo filme e não pode ser considerada “forte”, sobretudo num festival que recentemente assistiu à pegação intensa das jovens amantes de “Azul é a Cor Mais Quente”. Mas, certamente, jamais seria cogitada por qualquer roteirista dos anos 50.
Todd Haynes mais uma vez aplica a sua preocupação temática a um exercício temporal de estilo que remete aos melodramas clássicos dos anos 1950. Não é à toa, por exemplo, que em “Carol” a uma referência explícita a “Sunset Boulevard”, a obra-prima de Billy Wilder. A vantagem do diretor é que ele não se repete. Se em “Longe do Paraíso” sua inspiração era Douglas Sirk, em “Carol” ele não omite ter bebido na fonte de pelo menos outras três obras de referência: “Desencanto”, de David Lean , “Um Lugar ao Sol”, de George Stevens, e “Louca Escapada”, de Steven Spielberg, que embora seja de 1974, segundo Haynes lhe inspirou no terço final do filme, principalmente na fluidez da excepcional fotografia de Ed Lachman.
“Carol” é um filme que inicia lento, o que pode incomodar alguns espectadores. Mas segue num crescendo habilmente tecido pelo roteiro, que torna a narrativa mais sutil. Não se trata de uma história de amor passional, mas de um romance à moda antiga entre gente moderna. Cate Blanchet empresta uma dignidade impressionante à sua personagem, sempre no limite entre a segurança da opção sexual e o risco da separação filial. Rooney Mara é a coadjuvante à altura, com um toque de Audrey Hepburn em busca da sua princesa encantada.
Há ainda que se destacar a trilha preciosa de Carter Burwell, compositor que tanto agrada os presidentes do Júri de Cannes Joel e Ethan Coen, com quem já trabalhou. Dificilmente Todd Haynes sairá sem Palma. Merecida.
Palmas para uns vaias, muitas vaias para outros. Gus Van Sant, que já subiu ao céu da Palma de Ouro, com “Elefante”, despenca agora montanha abaixo com o desastroso “The Sea of Trees”, até agora a única unanimidade na Croisette. O filme mostra a insólita imersão do viúvo Arthur (Matthew McConaughey) a uma floresta aos pés do Monte Fuji, conhecida como palco de inúmeros suicídios. Lá ele encontra a companhia de Takumi (Ken Watanabe), um homem de negócios falido que também procura trocar as fichas no purgatório florestal.
Através dos diálogos entre os dois conheceremos a tragédia involuntariamente cômica que levou a morte a esposa de Arthur e ouviremos intermináveis reflexões de Takumi sobre a simbologia da passagem humana pela terra. Sempre embalados por uma trilha previsível que já entrega nos créditos a xaropada que virá pela frente. Nem mesmo a Variety, cujas críticas visam sempre impulsionar os filmes para o mercado, conseguiu sustentar uma abordagem neutra.
Pior, a Screen, formada por nove críticos de diversos países, em seu quadro de cotações, que vai de 0 a 4 estrelas, sapecou quatro notas 0 para o filme de Van Sant. No final, a média ficou 0.6, talvez a menor da história da revista em Festivais. E infelizmente nem dá para dizer que foi exagero.
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“MIA MADRE” CONSAGRA SENTIMENTALISMO PRÊT-À-PORTER DE NANNI MORETTI
por Ricardo Cota
“Habemus Palmam?” O título da crítica do Le Monde dá a dimensão do entusiasmo exagerado que tomou conta da crítica após a exibição de Mia Madre, de Nanni Moretti. O filme, a bem da verdade, não decepciona, mas também está longe de surpreender. O que, pela média, não lhe garante tanto entusiasmo como os vinte minutos (cronometrados!) de aplausos ao término da sessão de gala.
Tudo que se pode esperar de Moretti está lá, ainda que sem o viço dos seus filmes anteriores, sobretudo do tocante O Quarto do Filho, vencedor da Palma de ouro em 2001. Mia Madre parece regido por um sentimentalismo “prêt-à-porter”, em que tudo está sob controle, até os momentos de risos e lágrimas dos espectadores.
Margherita (Margherita Buy, intensa) é uma cineasta que vive uma crise artística e espiritual. É ela o alter ego de Moretti no filme, e não o próprio, que interpreta preguiçosamente um irmão solidário e entediado. O cineasta derrama pela protagonista sua angústias: a perda materna, a insegurança artística e sobretudo o velho, e carregado de remorso, discurso da falência das ideologias de uma geração que acreditou na revolução e se amava tanto. Ai, ai, ai.
Entre um recado metalinguístico e as visitas ao hospital onde a matriarca agoniza, Mia Madre promove um desfile de personagens que estão ali para compor o que se espera. A mãe gera compaixão; a netinha, esperança; o tio sacal, tédio; e John Turturro cai do céu para bagunçar o coreto e dar o tom histriônico “italiano” que faltava.
Acaba roubando o filme com sua interpretação fanfarrona do ator ítalo-americano que fala a língua como quem mastiga pedra, tem surtos de mitomania e sai pelas ruas de Roma de porre cantando temas de Nino Rota aos berros de nomes de diretores italianos como Fellini, Antonioni e Rossellini. Ha, ha, ha.
Moretti é queridinho de Cannes, cujo júri já presidiu e dificilmente deve sair sem Palma. Como o critério de premiação impede que o mesmo filme ganhe mais de um prêmio, se não for escolhido melhor filme, Mia Madre deve consagrar a emotiva Margherita Buy como melhor atriz ou Turturro como ator. Margherita merece mais, porém Turturro é o astro de Barton Fink, filme vencedor da Palma de Ouro dirigido pelos Irmãos Coen, que, vale lembrar, presidem o Júri.
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FILME DE PHILLIPE GARREL DÁ O TOM AUTORAL DA QUINZENA DOS REALIZADORES
por Ricardo Cota
L’Ombre de Femmes, filme de abertura da “Quinzena dos Realizadores”, dirigido por Phillipe Garrel, deu o tom autoral e cinéfilo que deve marcar a mostra organizada pelo diretor artístico Edouard Waintrop.
Criada em 1969, a “Quinzena” não tem o compromisso com a novidade nem com a promoção comercial imediata. É um espaço onde se pode apreciar a maturidade de diretores experientes e seu apreço pela linguagem cinematográfica. Resumindo: é o espaço da cinefilia por excelência.
E para ratificar a proposta, L’Ombre de Femmes, não poderia ter sido escolha mais acertada. Vigésimo-quinto filme dirigido por Garrel, de 67 anos, o filme, em concisos 73 minutos, expõe o alto grau de envolvimento do cineasta com a linguagem cinematográfica. Filmado em 35 mm, preto e branco e editado em moviola, trata-se de um filme feito à sombra da própria história do cinema, sobretudo da “nouvelle vague”, movimento do qual o diretor é um dos remanescentes.
O roteiro, que tem entre os autores nada mais nada menos do que Jean-Claude Carrière, apresenta uma história que poderia estar nos primeiros Godard ou nos Truffaut de qualquer fase. Pierre (Stanislas Merhar) é um documentarista entediado, que busca reencontrar-se com a história do pai recentemente falecido realizando um doc sobre a resistência francesa. Manon (Clotilde Courau) é a mulher que vive à sua sombra, optando por largar tudo para seguir o companheiro em sua determinação artística.
Pierre trai Manon com uma estagiária. Em sua concepção masculina, o ato não o leva a maiores aflições morais. Até o dia em que ele, Pierre, descobre não ser o único a trair. Aí, seu mundo cai.
Philippe Garrel está em seu terreno habitual, em que paixão, ciúme e traição formam uma rede que embala suas tramas e os dilemas de seus personagens. A grande mudança advém da concepção estética, cada vez mais burilada em termos de concepção visual sucinta e objetiva.
O espaço urbano em que Pierre e Manon transitam, por exemplo, padece de definição arquitetônica mais definida. São ruelas labirínticas que tanto podem ser de Paris quanto de qualquer outra cidade francesa. O preto e branco, por sua vez, contribui para uma indefinição cronológica.
L’Ombre de Femmes, portanto, não é um filme contemporâneo. Não fala das dores de amor e da ética dos relacionamentos dos dias que correm. Na verdade, é um filme que se passa em outro espaço de tempo. O tempo do próprio cinema. Escolha certeira para o pontapé inicial da “Quinzena dos Realizadores”.
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MATTEO GARRONE REINVENTA CONTOS MEDIEVAIS E HIROZAKU KOREEDA RETOMA LAÇOS FAMILIARES
por Ricardo Cota
Inspirado nos famosos contos medievais napolitanos de Giambatista Basile, Tale of Tales, de Matteo Garrone, abriu a mostra competitiva do 68º Festival de Cannes trazendo uma dose salutar de originalidade e personalidade autoral. O filme é um compêndio de histórias fantásticas que formam a matriz dos conhecidos contos de fada imortalizados pelos Irmãos Grimm e por Charles Perrault.
Embora se passe na idade média, Tale of Tales possui uma ligação profunda com o filme anterior do cineasta, Reality, que aborda a confusão mental de um cidadão do interior convidado a participar de um "reality show”. Segundo Garrone, o limite entre realidade e fantasia é uma característica marcante da narrativa de Giambatista Basile.
Na tela, o que se vê é um espetáculo exuberante que mescla de forma engenhosa no roteiro as versões originais de “Rapunzel”, “A Bela Adormecida”, “Cinderela” e “A Bela e a Fera”, apresentadas de forma crua, sem o toque edulcorado que banalizou as versões contemporâneas. Mesmo sem a intenção, Tale of Tales é uma resposta madura à afetação reducionista do recente Cinderela, de Kenneth Branagh. É conto de fada pra gente grande.
Assim, enquanto o espectador é entretido pelas histórias da rainha estéril (Selma Hayek), que recorre a um bruxo para parir, do rei mignon (Toby Jones) apaixonado por uma pulga e do nobre devasso (Vincent Cassel) seduzido por uma donzela misteriosa, Garrone tece comentários subjacentes.
Muito mais do que refinado exercício de estilo que inclui direção de arte primorosa, cenários magníficos na Sicília, Apulia e Lazio com uma trilha sonora multicolorida de Alexandre Desplat, Tale of Tales toca em temas universais como a busca da eterna juventude, a dolorosa passagem da adolescência para a vida adulta, infertilidade e o conflito de gerações. Um filme inventivo, bem realizado e original. Falado em inglês, pode não levar a Palma, mas dificilmente será ignorado pelo Oscar.
O outro concorrente da noite de abertura, My Little Sister, pode ser tudo, menos inovador. O japonês Hirozaku Koreeda retoma sua obsessão pelos laços familiares, tema de outros filmes do diretor como Still Walking (não lançado comercialmente no Brasil, mas exibido no Festival do Rio 2008 como "Andando, Andando") e do anterior Pais e Filhos, Prêmio do Júri em Cannes 2013. A diferença aqui é a ausência de conflitos, uma opção que muitos críticos interpretaram erroneamente como fraqueza de roteiro.
Três irmãs, em torno dos 20 anos, partem para o interior do Japão para acompanhar o funeral do pai - que há anos se separara da mulher para viver com outra. Lá conhecem uma meia-irmã adolescente, que aceita viver com elas em Tóquio. A relação entre as quatro flui sem drama, numa dinâmica narrativa que procura reproduzir o fluxo da vida. Ainda que com personalidades distintas, as quatro irmãs compõem um quadro harmonioso em que a felicidade advém das coisas simples da vida, como as folhas que caem das cerejeiras em flor. Houve quem saísse no meio. Eu terminei aterrado na poltrona diante da constatação do sublime. Cannes 2015 começou bem.
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ETHAN HAWKE ESTREIA EM BOM DOCUMENTÁRIO SOBRE PIANISTA-FILÓSOFO
por Ricardo Cota
Cannes - Horas antes do tapete vermelho ser estendido para Catherine Deneuve, estrela do filme de abertura La Tête Haute, de Emanuelle Bercot, os credenciados do 68º Festival de Cannes já faziam fila nos cinemas espalhados pela Croisette para conferir as primeiras novidades apresentadas para distribuidores e exibidores que participam do Mercado do Filme.
Este ano os destaques iniciais ficaram por conta de dois documentários: Seymour, An Introduction; e Steve Mcqueen: The Man and the Mans. O primeiro marca a surpreendente estreia do ator Ethan Hawke como documentarista. Hawke acompanha o dia a dia do pianista octogenário Seymour Bernstein, cuja trajetória de vida é o oposto do receituário dos astros e estrelas do star system global.
Aos 50 anos, no auge da carreira, depois de uma bem-sucedida excursão à Europa, Seymour decidiu corajosamente trocar o conforto da glória internacional pelo sossego de uma vida austera, num modesto apartamento nova-iorquino cujas contas paga com as aulas de piano que ministra com notório prazer. Dentre os motivos alegados para sua opção de vida, o zen-pianista alega o desgaste do estresse das apresentações em público e a exploração comercial da arte, que a seu ver é uma fábrica de neuróticos, como Glenn Gould, por exemplo.
Na direção do documentário, Ethan Hawke não esconde sua admiração pelo estilo de vida de Bernstein, que acompanha atenciosamente, sempre controlando a reverência exacerbada. Hawke procura passar ao espectador a sensibilidade das notas que saem dos dedos do seu mestre. Seu documentário é, no fundo, um caminho para o entendimento do que Seymour Bernstein qualifica como a interseção entre a arte de interpretar uma sonata e a arte de transformar a própria vida pela música. O resultado reflete a delicadeza resumida na explicação de um simples intervalo entre duas notas de partitura, que podem significar mero indicador técnico ou traduzir o mais profundo sentimento do autor.
O outro documentário bastante concorrido do primeiro dia de Cannes infelizmente frustrou a expectativa geral. Presente na mostra Cannes Classics, que apresenta cópias restauradas e documentários sobre cinema, Steve Mcqueen: The Man and the Mans, traz áudios inéditos do ator no leito de morte e se concentra basicamente na conturbada filmagem de As 24 Horas de Le Mans, filme em que Steve materializa seu fetiche pelas corridas de automóveis. O filme acabou entrando para a história mais pelo virtuosismo técnico, capaz de reproduzir pela primeira vez a tensão dos pilotos nas pistas, do que pela história, cujo roteiro, apesar dos esforços, nunca conseguiu chegar a uma versão final satisfatória.
Os diretores Gabriel Clarke e John Mckenna tentam engrenar a marcha acionando as (poucas) falas inéditas do astro hollywoodiano com imagens das filmagens e depoimentos de atores, produtores, corredores e familiares. Porém, como em As 24 Horas de Le Mans, o resultado é um documento desgovernado em que nunca sabemos se a linha de chegada são os bastidores de Hollywood, a personalidade de Mcqueen ou a revolução na técnica de filmar o automobilismo. No fim, entre acelerações e reduzidas, Steve Mcqueen: The Man and the Mans derrapa na curva.