Críticas


ADEUS À LINGUAGEM

De: JEAN-LUC GODARD
Com: HÉLOÏSE GODET, KAMEL ABDELI, RICHARD CHEVALLIER
24.07.2015
Por Carlos Alberto Mattos
Tão ou mais diletante, pedante e impenetrável quanto os filmes mais recentes de Godard, mas tem no uso do 3D um frescor e uma curiosidade admiráveis

Boy meets girl. Godard parte dessa semente da narrativa cinematográfica em Adeus à Linguagem. Mas a gente sabe que, para Godard, um rapaz e uma garota significam também a História, o Cinema, a Poesia, a Democracia, o Estado, a Guerra, a Europa, a África e outras coisas que precisam começar com maiúsculas. Nesse seu último filme, exibido este ano em Cannes, mais uma vez ele acumula referências, boutades e trocadilhos verbais e visuais, bem como recursos de desconstrução para investigar uma possível falência da linguagem. Ou pelo menos das linguagens mais nobres da literatura e do cinema. O que ele já vociferou contra o vídeo e a televisão em outros tempos agora se volta, já na primeira sequência, como ironia sobre os celulares e o conhecimento adquirido via Google.

Também logo no início do filme, ele faz duas declarações de princípios para o filme que está começando. Na epígrafe consta: "Todos os que não têm imaginação refugiam-se na realidade". Pouco depois, o subtítulo de O Arquipélago Gulag indica uma pista de gênero: "Ensaio de Investigação Literária". Ok, vamos assistir a um ensaio de investigação cinematográfica para quem possui imaginação. Não cabe, portanto, exigir "realidade" nem esperar formas fechadas de narrativa. O filme parece recomeçar a cada nova sequência, abrindo caminho entre interrupções bruscas e retomadas inesperadas.

Temos dois casais que parecem viver uma mesma história. Encontram-se, conversam, discutem, separam-se. Ela é casada, e o marido a certo ponto descobre o caso e mata o amante com tiros fora de quadro. E é tudo o que temos em termos de enredo, assim mesmo muito dissimulado e dispersivo. Uma subtrama, se é que se pode usar esse termo, são as vadiações do cachorro de Godard, Roxy Miéville, que aos poucos vai ocupando o protagonismo do filme em tom de elogio ao cão (Éloge du Chien?). Em dado momento, perambulando à beira de um rio, Roxy "compreende" a linguagem das águas, o que o homem não conseguiu até hoje, por mais que as águas tentassem se comunicar. Daí em diante, ele solicita autorização para falar, pedido ecoado por uma das moças.

Um emaranhado de vozes humanas se dissemina pelo filme, dentro e fora do quadro, para dar conta das ruminações do próprio diretor acerca das palavras, das imagens e de suas respectivas potencialidades e limites. "Daqui a pouco vamos precisar de intérpretes para compreendermos o que sai das nossas próprias bocas", diz uma moça. Godard parece disposto a abolir qualquer voz ou fio condutor específico – o que, no seu caso, equivale a impor a sua voz única através de uma suposta polifonia. Todas as vozes, naturalmente, soam como a voz do cineasta.

Monet e Van Gogh são citações visuais evidentes nas imagens de flores, folhas e paisagens de cores hiper-saturadas. Mas também Mary Shelley e Lord Byron comparecem numa esdrúxula sequência de época, evocando o tempo em que estiveram juntos em Genebra e Mary escrevia seu Frankenstein. Capas de livros viradas para a câmera, cenas de filmes em televisores, um ostensivo letreiro de "Usine à gaz" (fala-se de Hitler, claro) e uma cornucópia de citações verbais fazem a gramática habitual de Godard. No que seus fãs mais ardorosos veem genialidade, eu vejo apenas diletantismo autocentrado. Como nesse diálogo entre Marcus ("As duas maiores invenções foram o zero e o infinito") e Ivitch ("Não! Foram o sexo e a morte"). Pano rápido.

3D low-tech

Adeus à Linguagem tem a novidade de ter sido filmado em 3D. Não foi o primeiro de Godard com essa tecnologia. Leia aqui sobre o seu episódio em 3x3D, no qual ele levava a tridimensionalidade como brincadeira. Agora ele a investiga realmente como meio expressivo. Elege cadeiras, poltronas e vasos de flores como elementos que avançam para aquém da tela. Retira efeitos deslumbrantes de perspectivas do chão, do campo e de superfícies lacustres. Sublinha a crueza dos corpos em closes inquietantes. Amplia a profundidade com filmagens através de espelhos e composições em abismo.

Se associamos automaticamente o 3D à alta tecnologia e a imagens de superior realismo, Godard nos oferece o 3D puramente poético e ocasionalmente aplicado a imagens de baixa definição. Até mesmo os erros técnicos (ou algo que sugere erro) ganham foros de experimentação. Junto com câmeras Canon 5D foram usadas câmeras mais modestas, inclusive uma GoPro.



Adieu au Langage

A façanha mais comentada são dois momentos em que o operador Fabrice Aragno afastou uma câmera da outra para concretizar na imagem a separação momentânea de um casal. Um parceiro se afasta do outro e uma das câmeras o segue, enquanto a outra permanece enquadrando o que ficou. As duas imagens 2D então se fundem na tela com um efeito de grande incômodo. Durante esse breve tempo, o espectador pode fechar um dos olhos para ver uma só imagem (ele ou ela), fazendo uma edição particular da cena, a seu bel prazer (foto acima). Logo em seguida, eles se reaproximam e as imagens voltam a se encaixar em 3D. Nessas duas cenas, temos a sensação de que alguma coisa nova e forte foi obtida em termos de expressividade cinematográfica.

Conte-se ainda a espacialização do som nos diversos canais, o que corresponde à tridimensionalidade sonora. As vozes e as músicas fluem livremente através dos espaços, sem relação fixa com a disposição dos elementos na tela. Sem contar que boa parte dos sons se originam de locais não vistos nem sequer insinuados pela imagem.

Adeus à Linguagem é tão ou mais diletante, pedante e impenetrável quanto os filmes mais recentes de Godard, mas tem no uso do 3D um frescor e uma curiosidade admiráveis.

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