O projeto de Lost Zweig era um campo minado. Filme de época, falado em inglês, com elenco liderado por um ator alemão e uma atriz austríaca, argumento pesado sobre a utopia fracassada de um escritor. Enfim, a receita completa de um fiasco. Mas Sylvio Back contrariou as piores expectativas e driblou todas as armadilhas com um filme que se concentra no essencial.
Com grande economia de signos e a força de diálogos muito bem escritos, Back ajusta o foco sobre os dilemas de Stefan Zweig em sua última semana de vida, tentando uma solução de compromisso com o governo de Vargas e, ao mesmo tempo, com seus fantasmas pessoais. Não há propriamente um desejo de “retratar” o Brasil no ano de 1942. O país prosaico aparece apenas em duas ou três cenas, que, se não estão no nível alegórico do Brasil de Aleluia, Gretchen (o último filme em que Back enfocou as relações germano-brasileiras, em 1977), tampouco podem ser avaliadas pela ótica documental.
O que importa, em Lost Zweig, é o rebatimento desse Brasil festivo e sensual na psique conflagrada do escritor em fuga. Zweig foge tanto da Alemanha nazificada quanto da sua própria identidade. Para dar conta dessa estranha síndrome, Back criou imagens-síntese poderosas, como um jogo de xadrez em que Zweig se desdobra nos dois contendores e as “visitas” espirituais da ex-mulher Friederike, já então convertida numa espécie de voz da consciência de Zweig.
Quem conhece a obra de Sylvio Back sempre espera dele cenas historicamente polêmicas. O novo filme não foge à regra. A partir de indícios e ilações atrevidas, ele mostra, por exemplo, dois encontros pessoais entre Stefan Zweig e Orson Welles, que filmava É Tudo Verdade no carnaval carioca de 1942, além de uma cena de impacto em que o escritor toma conhecimento da verdade a respeito do sucesso de vendas do livro Brasil – O País do Futuro. A História, para este realizador, não é uma donzela a ser preservada, mas uma puta sempre aberta à livre dramatização e às licenças metafóricas.
Nas tramas da rede de Lost Zweig desenham-se as feições do diretor: a defesa de um livre pensamento infenso a alinhamentos ideológicos; a preferência por uma temática ligada às suas origens judaico-européias; a compulsão em mexer com dogmas e pruridos historiográficos.
Fruto de uma longa obstinação, perseguida pelos últimos cinco ou seis anos, Lost Zweig é o feliz encontro de uma tema, uma linguagem e uma produção afinados. Com movimentos compassados e elegantes, dentro de um estilo clássico que se diria “europeu”, Back constrói planos-seqüência arrojados e extrai pathos de cada elemento da cenografia. Este é talvez o seu melhor filme desde Aleluia, Gretchen. Aquele onde a excelente fotografia (Antonio Luiz Mendes), a montagem hábil (Francisco Sérgio Moreira) e a trilha sonora à primeira vista incongruente (Guilherme Vergueiro e Raul de Souza) resultam num todo harmônico e numa sutil complexidade de sentidos superpostos.
Rüdiger Vogler, apesar de algumas pausas equivocadas, encarna o Stefan Zweig denso e atormentado que podíamos mesmo imaginar, enquanto a bela Ruth Rieser o acompanha no diapasão adequado. O elenco brasileiro, expressando-se num inglês bastante digno, também está irretocável. A exceção é de Renato Borghi, que não consegue reverter suas afetações de praxe em benefício da caracterização de Getúlio Vargas.
Entre vários momentos memoráveis, destacam-se as últimas ações de Lotte, em silêncio comovente, antes de juntar-se ao marido no leito de morte. Isso bastaria para dar provas de um realizador em pleno domínio de sua maturidade, conciliando o trágico e o sensual, o inferno e o paraíso, de maneira impecável.
# LOST ZWEIG
Brasil, 2003
Direção: SYLVIO BACK
Elenco: RÜDIGER VOGLER, RUTH RIESER, RENATO BORGHI, DANIEL DANTAS
Duração: 114 min.