Críticas


A PELE DE VÊNUS

De: ROMAN POLANSKI
Com: EMANUELLE SEIGNER, MATHIEU AMALRIC.
23.09.2015
Por João de Oliveira
Um pequeno filme inteligente e mordaz no melhor estilo de seu diretor.

O mais recente filme de Roman Polanski relata o encontro e o jogo de sedução e de poder que se estabelece entre um diretor de teatro e uma atriz. No início, vemos o intelectual, tradutor e diretor teatral Thomas Novachek preparar-se, entristecido, para voltar para casa após mais um dia infrutífero em sua busca da atriz ideal para a sua adaptação de A Vênus das Peles, do autor austríaco Leopold von Sacher-Masoch, quando subitamente adentra o teatro, como uma epifania ou um fantasma vindo não se sabe de onde, a atriz Vanda Jourdan, caracterizada da mesma maneira vulgar que as outras candidatas que se apresentaram antes dela, suscitando o mesmo desprezo do diretor.

Espécie de working in progress de uma montagem teatral e de hermenêutica do texto do escritor austríaco, A Pele de Vênus apresenta o ato de criação, qualquer que ele seja, como um espaço autorreflexivo e terapêutico de catarse e/ou sublimação de fantasmas pessoais.

Adaptação da peça de teatro feminista Venus in fur, escrita por David Ives e dirigida por Walter Bobbie em 2010, na Broadway, o filme parece uma ode do diretor à sua esposa, a atriz Emmanuelle Seigner; um texto escolhido para que ela brilhe e mostre as diversas facetas de sua arte interpretativa, sempre muito criticada pelos franceses. O que, aliás, ela consegue com muito talento e variadas nuances representativas, passando constantemente, e nos dois sentidos, de uma vamp vulgar extrovertida (e canastrona, com uma linguagem empobrecida) à fleuma e à linguagem aristocráticas - ao mesmo tempo em que se apodera do caráter dominador da personagem alemã que ela representa com fineza, e de quem ela conhece de cor todas as falas.

Polanski usa o conflito entre um diretor de teatro arrogante e pretensioso, que pode acabar totalmente submetido a uma atriz tão talentosa quanto inculta, para debochar sarcasticamente das veleidades e das ideias preconcebidas de um certo meio artístico. O talento dos três principais envolvidos na realização do filme evidencia-se um pouco mais nas sequências finais. Primeiramente com Polanski e seu domínio do espaço, do enquadramento, da direção de atores e da fineza dos pequenos detalhes em um filme que, embora esteja longe de ser um dos melhores de sua carreira, é, sem dúvidas, o mais pessoal e mais autoral dos últimos anos. Um pequeno filme inteligente e mordaz no melhor estilo de seu diretor. Em seguida, brilham Emmanuelle Seigner, que renova com a esperança que a crítica lhe depositara no início de sua carreira, quando foi dirigida por alguns dos melhores diretores franceses (inclusive Jean-Luc Godard), e Mathieu Amalric, que prova a sua versatilidade e confirma que ele é um dos melhores atores franceses da atualidade.

ATENÇÃO: SPOILER

Misturando ficção e realidade, tal qual fez Sacher-Masoch (cujo nome está na origem da etimologia do substantivo masoquismo), os dois personagens do filme vão aos poucos incorporando a identidade psicológica dos personagens teatrais que eles passam a representar. Assim, ao mesmo tempo em que (no livro original) o personagem Severin vai se deixando escravizar pelo espírito manipulador de Wanda von Dunajew, nesta recriação Novachek vai perdendo a sua arrogância, revelando suas fraquezas e indecisões, submetendo-se e subjugando-se aos desejos e a melhor compreensão do texto da atriz supostamente ignorante que, gradualmente, vai delineando uma linha interpretativa e uma concepção do espetáculo que parecem mais adequadas e modernas do que a sua própria. Agindo desta maneira, o filme parece ressuscitar a famosa questão discutida por Umberto Eco em seu conhecido livro Obra aberta e condenar, de maneira quase jocosa, as verdades absolutas e a unicidade interpretativa que sufocariam a vocação polissêmica dos bons textos literários.

Vanda - cujo personagem lembra um daqueles fantasmas que ocasionalmente emergem, como citado pelo diretor Henrik Vogler (Erland Josephson) no início de Depois do ensaio, de Ingmar Bergman, para infernizar o espírito de alguns diretores de teatro - usurpa a direção do espetáculo e passa - não apenas a dirigir a peça - mas também a exercer um certo controle sobre a vida de Novachek (sobre quem ela age, em determinados momentos, quase como uma terapeuta). Nesse momento, ela parece ser a encarnação de Dionísio, na medida em que ela mantém o controle total da concepção da peça de teatro. Com sua dominação inquestionável e definitivamente estabelecida, o filme desliza da comédia para o fantástico e Vanda passa a encarnar, como uma espécie de fantasma, o espírito guerreiro de uma bacante e/ou de uma Valquíria, referenciados pelo filme, mas que poderia ser também o de uma amazona que aparece para por fim - não apenas à dominação do diretor (e do homem por trás dele) - mas também para inverter a posição sexista existente nas entrelinhas do texto de Sach-Masoch e representar a vitória simbólica de todas as atrizes sobre seus autoritários e arrogantes diretores e, por extensão, de todas as mulheres sobre todos os homens.

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