Em A Vida É Um Milagre, o diretor Emir Kusturica retorna a um território conhecido e reconhecível: as ruínas de um país que era o seu, a Iugoslávia multiétnica e multirreligiosa, que os rearranjos da Europa, depois da queda do Império Austro-Húngaro, haviam criado, em volta da Sérvia, uma das triunfadoras da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). No entanto, qualquer evocação histórica não se encaixa na lógica do seu cinema, surrealista e anárquico, lidando mais com emoções imediatas do que com propostas políticas.
Em Underground, Kusturica convocava os agentes do caos para protagonizar a guerra; em Gato Preto, Gato Branco desenvolvia um projeto, próximo de Vida Cigana, na medida em que expunha todo o seu bestiário essencial, desde os "eróticos" gatos do título, ao suíno que devorava um automóvel enferrujado: unia o aleatório dos surrealismos a excessos outros, da comida, do poder catártico da música, da abundância das formas físicas, em terrenos contíguos a cineastas como Fellini, mas com uma palheta bem eslava de sons e de imagens.
Esta breve viagem aos antecedentes do mundo conceitual de Kusturica justifica-se a vários títulos, quando falamos deste A Vida É Um Milagre: o microcosmos reconstruído para esta ficção é o dos territórios de maioria sérvia, no interior da sua Bósnia-Herzegovina natal; os banquetes, festas e excessos carnavalescos (prato perfeito para análises bakhtinianas e para paralelos produtivos com outros mundos "carnavalescos", de Rabelais a Buñuel) proliferam, levados à náusea na seqüência em que o pequeno "gangster", no carro, se lambuza de comida e de lascívia; animais simbólicos, a recordar o seu habitual bestiário, não faltam - gatos, ovelhas, cães e, sobretudo, um burro que chora, pautando estrategicamente a ficção.
Esse animal, sofrendo por um desgosto de amor, vai ser o símbolo do desespero que se abate sobre algumas das personagens mas também ilustração da perseverança e da não desistência perante as dificuldades. Nos fazendo lembrar, no contexto do dualismo entre as personagens humanas e o burro, o Baltashar de A Grande Testemunha, de Robert Bresson. Sua primeira aparição se faz num dos percursos dos veículos que se deslocam sobre os trilhos de uma rede ferroviária, pretexto para a Festa e para a Viagem (grandes temas secundários do filme): o burro empaca atravessado na linha, impedindo a circulação, e chora um amor perdido. Mais tarde, regressa em momentos cruciais: para impedir o protagonista de se suicidar atirando-se embaixo do trem e para favorecer o reencontro dos amantes separados, uma espécie de Romeu e Julieta, metáfora do conflito da Bósnia e simbólica solução previsível para o absurdo da "guerra".
Esta história de amor passada na Sérvia antes e durante a guerra da Bósnia, centra-se em Luka (Slavko Stimac), um homem de meia-idade cujas principais preocupações são a carreira futebolística do filho Milos (Vuk Kostic), que espera ser convidado para jogar no Partizan de Belgrado, e também consolar Jadranka (Vesna Trivalic), a sua desequilibrada esposa, a superar o fato da sua fama como cantora lírica ter se evaporado. É nesta micro realidade que esta família vive sem se preocupar com a eminência da guerra. Quando esta arrebenta o filho é chamado a combater e a mulher foge com um músico húngaro. É no desespero de rever o filho que Luka faz de prisioneira de guerra, a belíssima bósnia Sabaha (Natasa Solak). Como o amor não conhece raças nem fronteiras estes apaixonam-se num clima de intensificação dos conflitos.
A primeira sensação é de Kusturica a fazer Kusturica, em divertido piloto automático, mas repetindo tiques e autocitando-se. Há grandes momentos, como a festa de inauguração da nova ferrovia, as confusões dos carros sobre os trilhos ou ainda o achado do já referido "burro que chora", mas não acrescenta muito ao que já conhecíamos do cineasta. A história de amor "iugoslava", apesar de óbvia na sua valência inter-étnica, desloca a parábola para campos visuais de grande beleza com os corpos unidos a rolarem na neve ou o ritual de aproximação dos futuros amantes sob os bombardeios.
Uma coisa, porém, é certa, poucos conseguirão "tratar" a guerra como Kusturica. Mais do que o lado dramático da guerra, o cineasta consegue transformar um conflito (invisível mas onipresente) numa comédia trágica, entre o hilariante, e o drama intenso, mas sempre carregado de ironia.Nada disto é à-toa, afinal esta foi a "sua" guerra.
#A VIDA É UM MILAGRE
Iugoslávia/França, 2004
Direção: EMIR KUSTURICA
Roteiro:RANKO BOSIC, EMIR KUSTURICA
Elenco:SLAVKO STIMAC, NATASA SOLAK, VESNA TRIVALIC
Duração: 154 min