A perda da inocência através do dorido contraste com os porões mais escuros do universo adulto já serviu de mote a filmes os mais diversos. Poucas vezes, contudo, com a delicadeza de Gabriele Salvatores em Eu Não Tenho Medo, indicado pela Itália ao Oscar de melhor produção estrangeira no ano que vem. O diretor, já oscarizado por Mediterrâneo, foi extremamente feliz na adaptação do romance homônimo do escritor Niccolà Amanti, co-autor do roteiro.
O enredo é bem simples. Michele (Giuseppe Cristiano) mora no sul da Itália com a mãe, o pai e a irmã. Nos belíssimos campos amarelados da região, onde brinca com os amigos, certo dia ele descobre um buraco escondido, no qual está preso um menino, aparentemente da mesma idade. A relação de Michele com o garoto e as revelações que daí decorrem desenharão um verdadeiro mosaico de aprendizados, que incluem temores, decepções e heroísmo. Pois malgrado o medo que por vezes o domina, ele é sempre capaz de emprestar solidariedade, de desafiar ainda que silenciosamente quem o ameaça. Salvatores indica com sutileza que a luta contra esse “medo” se desenvolve internamente ao manter o título original do filme em letras minúsculas, como se denotasse o “sussurro” de Michele para si mesmo, que impulsiona suas ações.
Com a intenção de colocar o espectador na pele do pequeno protagonista, o diretor abusa dos planos subjetivos, filmados em geral com a câmera posicionada na altura dos olhos do menino. As conversas entre os pais, as brigas... Há um imenso e desconhecido mundo que enfim se desvela entrecortado pela porta do quarto e pelas janelas parcialmente abertas. O quase intransponível fosso entre as lógicas que regem a infância e a fase madura é seguidamente evidenciado nos diálogos, como, por exemplo, no momento em que Michele revela seu maior segredo em troca de um carrinho de ferro, e seu amigo, que aceitara tal permuta, se confessa decepcionado: acha que o brinquedo valia mais.
A beleza do filme deve muito também à excepcional fotografia de Italo Petriccione, que pinta de tons amarelados a tela, evocando a memória, e à música de Ezio Bosso, que sublinha eficazmente o lirismo que envolve as grandes revelações. Os atores, principalmente o elenco infantil, têm atuação irreparável. São especialmente expressivos os olhares que descortinam alegrias fugazes, como a de comer um doce, ou a de acenar para os helicópteros que sobrevoam os campos, sem saber que na verdade são da polícia e sinalizam o encaminhamento trágico da história. Trata-se de uma das mais interessantes seqüências do filme, menos significativa somente do que aquela que retrata a chegada das ceifadeiras que irão decepar a plantação onde se divertem as crianças. O susto entranhado nas faces ingênuas que assistem às máquinas cerrando o campo representa uma poderosa e eloqüente metáfora da lâmina que começa a talhar sua saída do tempo dos sonhos e o violento ingresso nas agruras da realidade.
# EU NÃO TENHO MEDO (io non ho paura)
Itália, 2002
Direção: GABRIELE SALVATORES
Roteiro: NICCOLÒ AMMANTI, FRANCESCA MARCIANO
Fotografia: ITALO PETRICCIONE
Música: EZIO BOSSO
Montagem: MASSIMO FIOCCHI
Elenco: GIUSEPPE CRISTIANO, MATTIA DE PIERRO, AITANA SÁNCHEZ-GIJÓN
Duração: 109 min