Para pensar o suicídio de forma séria é preciso despir-se do tabu social e religioso que envolve o tema para enxergar o ser humano no limite de sua liberdade absoluta. O cinema contemporâneo já ofereceu uma reflexão de peso sobre o assunto em Gosto de Cereja (1997), de Abbas Kiarostami, em que uma irônica frase do filósofo Emile Michel Cioran (“Se não houvesse a possibilidade do suicídio, eu já teria me matado há muito tempo”) lançava o cineasta em uma intensa jornada reflexiva sobre a possibilidade de viver. “A vida não é forçada a nós, nós temos a chance da escolha”, disse Kiarostami em entrevista à revista Film Comment. Mais recentemente, Godard tocou no assunto em Nossa Música (2004), ao refletir sobre a questão palestina e os homens-bomba. Em certo momento, ele cogita que talvez esta seja a única questão verdadeiramente importante do homem, escolher estar vivo ou não (“ser ou não ser”, afinal).
Em muitos aspectos, Mar Adentro, de Alejandro Amenábar, é o oposto absoluto de Gosto de Cereja, apesar de tratar do mesmo assunto. Kiarostami e Amenábar não poderiam ter imprimido a seus filmes tratamentos mais divergentes: o primeiro seco e direto, recusando-se a qualquer recurso manipulador, o segundo abusando de situações ao pé do melodramático, do uso abusivo da música, e da vontade de mobilizar o espectador a ponto de arrancar-lhe lágrimas.
Mas, apesar dessa tendência ao apelativo, o filme de Amenábar consegue guardar uma secura profundamente incômoda. Ela está, talvez, na fidelidade ao discurso racional de seu protagonista, o irredutível Ramón Sampedro (Javier Barden, em atuação memorável). Imóvel e insensível do pescoço para baixo após um acidente no mar, Ramón quer morrer.
Não se trata, aqui, da eutanásia mais conhecida pelo senso comum, ou seja, “desligar os aparelhos” de alguém que está inconsciente, em estado vegetativo, e que não tem mais como tomar decisões. Ramón tem plena consciência do que quer, mas está fisicamente impossibilitado de agir. Para se matar, precisa de ajuda. E, sem outra saída, vai à justiça para exercer esse direito. Não há discurso capaz de convencê-lo do contrário, e, com um uso impressionante da faculdade humana por excelência, a razão, ele combate todas as instituições (estado, igreja ou família) que se opõem à sua decisão.
Em certo sentido, portanto, Mar Adentro está mais próximo de Gosto da cereja do que, por exemplo, de um outro famoso filme sobre o mesmo tema, muito menos corajoso, o dramelô De Quem É a Vida, Afinal? , que John Badham dirigiu em 1981, com Richard Dreyfuss defendendo um personagem semelhante a Ramón, e John Cassavetes como um médico. Amenábar opera um quase-milagre ao fazer um filme que mobiliza clichês sem se curvar a eles, domando o que poderia se transformar em pura banalização e impedindo o esfacelamento do impressionante discurso de Ramón.
Talvez isso só seja possível por um aspecto que se assemelha a um controle obsessivo: Amenábar não assina apenas a direção, mas também o roteiro (com Mateo Gil), a montagem e a música. Ou seja: tomou cada uma das decisões importantes que levaram a esse resultado de alto impacto emocional, capaz de conduzir o público sem diluir idéias. No fim das contas, Amenábar não sucumbe àquela que seria a pior das banalizações, ou seja, recorrer a qualquer recurso espiritual e metafísico para suavizar a opção pela morte. Um passo no mínimo curioso para um cineasta que assinou o sobrenatural Os Outros.
# MAR ADENTRO
Espanha, 2004
Direção: ALEJANDRO AMENÁBAR
Roteiro: ALEJANDRO AMENÁBAR, MATEO GIL
Fotografia: JAVIER AGUIRRESAROBE
Montagem: ALEJANDRO AMENÁBAR
Direção de arte: BENJAMIN FERNANDEZ
Música: ALEJANDRO AMENÁBAR
Elenco: JAVIER BARDEN, BELÉN RUEDA, LOLA DUEÑAS, MABEL RIVERA, CELSO BUGALO, TAMAR NOVAS
Site do filme: www.mar-adentro.com
Duração: 125 minutos