Artigos


TERRA EM TRANSE, O MONSTRO DE TRÊS OLHOS

20.05.2005
Por Carlos Alberto Mattos
TERRA EM TRANSE, O MONSTRO DE TRÊS OLHOS

Terra em Transe é um filme que nos encara, monstruosamente, com três olhos. Desde que surgiu, e ainda hoje, exige de nós uma alteração de paradigmas. Requer uma suspensão do conforto com que o cinema narrativo nos habituou. Nele não encontramos a lógica linear da sucessão, nem mesmo a falsa descontinuidade do cinema moderno, que acaba se ajustando, a tempo e a hora, num discurso fechado, por mais sofisticado que pareça. O filme termina e o monstro continua a nos lançar a sua tripla mirada.



Um olho de Terra em Transe é o que se volta para o passado mítico da América Latina a partir da seqüência aérea inicial: um movimento que passa do mar às montanhas cobertas pela mata virgem de Eldorado. Este é o percurso dos descobridores, que volta a ser aludido mais adiante, na chegada de Díaz à praia deserta. Munido do inseparável crucifixo e da bandeira negra, o personagem de Paulo Autran exala tradição e permanência. Seus signos remetem à evangelização e à monarquia, instrumentos de dominação que estão na base da vocação conservadora brasileira e se reproduziam – conforme a cartilha marxista dos anos 1960 – na alienação religiosa e carnavalesca.



Outro olho está cravado no presente de 1967, quando a consolidação do regime militar expulsava as demais forças políticas para o terraço desamparado do puro debate ideológico. Paulo Martins, o poeta dilacerado entre cooptar com o poder e pregar a revolução popular favorecida por um líder democrático, é a expressão super-humana desse impasse. É mais que evidente a auto-figuração de Glauber Rocha no personagem de Jardel Filho: o mesmo elã nacionalista; a mesma crise de consciência do intelectual que desconfia tanto dos próceres políticos quanto da capacidade de sublevação do povo; o mesmo desespero por não conseguir cumprir o “nobre pacto” entre compromisso e ruptura; enfim, a mesma solidão do artista que não chega a assumir-se como guerrilheiro e paira em algum ponto vazio entre dunas e céu.



O terceiro olho do triclope projeta-se para o futuro. O futuro de Glauber, que vai encontrar a morte apenas 14 anos depois desse transe, tendo já sido tachado dos mesmos adjetivos lançados a Paulo Martins: reacionário, anarquista, contraditório, politicamente irresponsável. Futuro do país, desenhado com o pessimismo que parecia a única hipótese lúcida na época – tão distante da perspectiva de um Jerônimo no poder. Futuro, principalmente, do cinema, com o qual Terra em Transe continua a dialogar em termos avançados.



O que era, senão futuro, aquela decupagem selvagem que quebrava os eixos, desorientava o olhar e precipitava os tempos, tal como a edição dos dogmáticos escandinavos faria bem depois? O que era aquela coexistência do operístico, do intimista e do metalingüístico senão uma especulação sobre a possível herança conjunta de Visconti, Godard, Welles, Brecht e Cassavetes? O que era a câmera na mão de Dib Lutfi senão a antecipação da steadicam?



Terra em Transe é um monstro sem idade. Seu tempo parece que ainda vai chegar.



# TERRA EM TRANSE

Brasil, 1967

Direção e roteiro: GLAUBER ROCHA

Fotografia: LUIZ CARLOS BARRETO

Câmera: DIB LUTFI

Montagem: EDUARDO ESCOREL

Música: SÉRGIO RICARDO, CARLOS GOMES, VERDI, VILLA-LOBOS

Direção de arte: PAULO GIL SOARES

Produção: GLAUBER ROCHA, ZELITO VIANA, LUIZ CARLOS BARRETO, CACÁ DIEGUES, RAYMUNDO WANDERLEY REIS

Elenco: JARDEL FILHO, PAULO AUTRAN, JOSÉ LEWGOY, GLAUCE ROCHA, PAULO GRACINDO, HUGO CARVANA

Duração: 106 minutos

Voltar
Compartilhe
Deixe seu comentário