INÚTIL PAISAGEM
Caribe
De boas intenções, o Caribe está cheio. Um dos mais festejados redutos de natureza exuberante, o Caribe é cenário perfeito para um filme de temática ecológica, sobretudo quando se tem como alvo uma pacata praia da Costa Rica ameaçada pela exploração de uma empresa de petróleo. Pena que Caribe, de Esteban Ramirez, não faça jus à sua paradisíaca locação. O filme tem todas as características de uma produção para a tevê a cabo.
Vicente Vallejo (Jorge Perugorria) trocou o estresse da grande cidade por um vidão à beira-mar com a bela esposa. Fruticultor, vê o sonho ameaçado quando seu único cliente, uma multinacional, decide rescindir o contrato. Com contas a pagar, Vicente é cooptado por representantes de uma petroleira que quer explorar os recursos da região, ameaçando assim o turismo e o comércio locais. Em meio ao impasse financeiro e à crise ética, o protagonista é surpreendido pela chegada inesperada de uma irmã distante de sua esposa, um pitéu sedutor que cai de pára-quedas no roteiro para salpicar a trama de sexo, traição e ciúme.
Entre o novelesco drama conjugal e os discursos ambientalistas, Caribe brinda o espectador com o que tem de melhor: céu, sol, mar e alguma fauna e flora. Esquemático, didático e superficialmente panfletário, Caribe lembra Amazônia em Chamas, cinebiografia de Chico Mendes estrelada por Raul Julia e dirigida por John Frankenheimer. Tanto um quanto outro são fortes no intuito, porém fracos na realização. Os ambientalistas merecem filmes melhores.
# CARIBE
Costa Rica, 2004
Direção e Produção: ENRIQUE PIÑEYRO
Elenco: JORGE PERUGORRIA, CUCA ESCRIBANO, MAYA ZAPATA
Duração: 90 minutos
CUBA POP
Três Veces Dos
Filmes em episódios dificilmente fogem à irregularidade. Não é diferente com este Três Veces Dos, que reúne, pelo menos aparentemente, três histórias sem qualquer ligação, seja no estilo, seja na escolha dos próprios temas. Uma visão mais crítica, no entanto, revela que por trás da aparente falta de conexão há um retrato bastante apurado da Cuba contemporânea, no limiar de uma crise entre o arcaico e o moderno.
A princípio são três histórias de casais. Na primeira, um jovem fotógrafo, que flagra fragmentos da decadência arquitetônica de Havana, é surpreendido por imagens fantasmagóricas de uma loura fatal, que mais tarde descobriremos ser a vítima jamais encontrada de um incêndio no cabaré El Encanto. Aqui o moderno, representado pelo jovem, é atropelado sem perdão pelo passado, que resiste como uma sombra e parece ancorar projetos futuros. A narrativa é ágil, com uma trilha que funde o pop ao clássico, recurso presente também na narrativa, que alterna os atropelos de muita câmera na mão com a elegância de travellings e gruas.
No segundo episódio, com certeza o mais inusitado de todos, uma senhora, no dia de uma homenagem a ex-combatentes da revolução, rememora um romance interrompido. O inusitado fica por conta da opção de estilo. Trata-se de um número musical que parece cola das produções de Bollywood, a Hollywood da Índia. Enquanto revira um velho baú, a senhora canta um tema de derramada melancolia, que acompanha inclusive o flashback responsável pela narração do romance pré-revolução. O melodrama não poupa excessos e em alguns momentos ultrapassa os limites do dramalhão novelesco, expondo os entrelaçamentos de um imaginário audiovisual muito particular. Também aqui, o tempo é a chave da proposta, mostrando que à dinâmica dos anos rebeldes seguiu-se uma profunda nostalgia a ser redimida pelo amor.
Finalmente, o último episódio transborda de modernidade. O encontro fortuito entre um psiquiatra e uma cega é apresentado no melhor estilo pop, fragmentário, com muita música. São personagens urbanos solitários, divididos entre o desejo latente, manifestado por fantasias, e a timidez ou o recolhimento. Representam a tensão entre o presente (“Há que se viver o hoje”, diz um personagem) e a indefinição do porvir. Enquanto não decidem, os solitários refugiam-se nos sonhos e na masturbação.
Três Veces Dos, mesmo padecendo de alguma ingenuidade e primarismo, dá indícios de uma transformação estética resultante da luta entre o tempo de uma realidade muito própria e o tempo do mundo que a cerca. Em meio a tantas incertezas, apenas uma convicção: a de que existem escolhas para além da cartilha do realismo.
# TRES VECES DOS
Cuba, 2004
Direção: PAVEL GIROUD (1); ALEJANDRO BRUGUÉS e LESTER HAMLET (2); XÊNIA RIVERY e ESTEBAN INSAUSTI (3)
Elenco: GEORBIS MARTÍNEZ, VERÓNICA LOPEZ, SUSANA TEJERA (1); OLIVIA MANFRUTO, MARTHA DEL RIO, CALEH CASAS (2); ALEXIS DIAZ DE VILLEGAS, ZULEMA CLARES, EMANXOR OÑAS (3)
Duração: 90 minutos
STRINDBERG DOS PAMPAS
Noite de São João
Poucos cineastas conseguiram captar a essência de um dramaturgo com tanta fidelidade quanto o sueco Ingmar Bergman. Praticamente em todos os seus filmes, com maior ou menor intensidade, paira a sombra do autor teatral August Strindberg. Além de compatriota do escritor, Bergman possui uma afinidade com temas que sempre fizeram parte da obra de Strindberg. A explosão dos desejos latentes sobre as ações diárias, os impulsos femininos, a tirania das relações burguesas, a onipresente figura paterna e as brechas entre real e imaginário foram filtradas por Bergman para o cinema com uma fidelidade incomparável. Pode-se dizer, sem exagero, que os filmes de Bergman complementam as peças de Strindberg. Diante de Noite de São João, o prólogo desta crítica se faz necessário por se tratar, exatamente, de uma adaptação de Senhorita Júlia, talvez o mais conhecido (e mais filmado!) texto de Strindberg.
Mais do que uma adaptação, o filme é uma transposição da peça para uma fazenda do Rio Grande do Sul, no ano de 1905. Na passagem, Senhorita Júlia (ou “menina Júlia”, como preferem os portugueses) transforma-se na arrogante filha de um fazendeiro que se aproveita da condição social e da beleza física para dominar um estancieiro. Todo o envolvimento se passa numa noite de São João.
Apesar das irregularidades do roteiro, quase todas resultantes dos problemas decorrentes da transposição, Noite de São João consegue em seus melhores momentos se aproximar, mesmo que de forma tímida, do universo do autor teatral. A grande dificuldade talvez tenha sido dar uma linearidade ao conjunto dos atores, que deslizam entre a Suécia e os pampas, entre o cinema e o teatro, entre o naturalismo do sotaque gaúcho e a inflexão teatral. Se não há força nas entrelinhas, pelo menos quando se concentra no jogo de poder entre os dois protagonistas Noite de São João esbarra no teatro de Strindberg, ainda que permaneça a muitas léguas do cinema de Bergman.
# NOITE DE SÃO JOÃO
Brasil, 2003/2004
Direção: SÉRGIO SILVA
Elenco: FERNANDA RODRIGUES, MARCELO SERRADO, DIRA PAES
Duração: 100 minutos
O CÉU QUE NÃO NOS PROTEGE
Whisky Romeo Zulu
Na prateleira de gêneros de uma locadora, Whisky Romeo Zulu teria como destino óbvio a galeria “filme-denúncia”. Mas, no Brasil e países afins, o mais justo seria situá-lo como “filme de terror”. Baseado em história real, Whisky Romeo Zulu reforça o alerta para a tragédia anunciada das companhias aéreas em processo de falência, algo perigosamente familiar por essas plagas. Em 31 de agosto de 1999, um Boeing 737 da LAPA espatifou-se no centro de Buenos Aires. Por trás do acidente, um histórico de cortes econômicos e de operações sigilosas responsáveis por uma série de vôos de risco precedentes à tragédia anunciada.
Em sua estréia como diretor, Enrique Piñeyro, ele mesmo um ex-piloto da LAPA, surpreende pela segurança e firmeza na direção de um filme de caráter investigativo. Conhecido do público pela sua atuação como ator em Esperando o Messias, de Daniel Burman, Piñeyro, também presente no elenco de Whisky Romeo Zulu, conta com a boa interpretação de Alejandro Awada como protagonista. Alejandro compõe com sobriedade e distanciamento o piloto espremido entre decisões limítrofes, como denunciar as perigosas ações de sua empresa ou pedir demissão. Um romance do passado atravessa a trama e torna ainda mais complexo o drama do piloto, que descobre ser uma paixão da pré-adolescência hoje alta executiva da LAPA.
Whisky Romeo Zulu - o título refere-se à forma como as iniciais dos códigos aéreos são proferidas por funcionários – foge ao esquematismo e ao tom empostado dos filmes-denúncia tradicionais. Para o bem e para o mal, Piñeyro exercita estilos diferenciados, que contribuem para ratificar o alto nível de profissionalismo do cinema argentino contemporâneo. Acerta ao captar a tediosa rotina do piloto solitário, entrecortada pela poética dos sobrevôos por sítios históricos e belíssimas visões celestes. Merece registro também uma sensação de “nowhere” que acompanha esses profissionais, que vivem em todos os lugares e em lugar algum, sobretudo na passagem pelo Rio de Janeiro, infelizmente anunciada por uma deslocada interpretação de Clara Nunes na trilha sonora. Piñeyro erra, no entanto, ao inserir um desnecessário flashback do romance infanto-juvenil de seu personagem principal, justificável apenas como capricho de uma produção sofisticada, em termos de registro de época, porém despropositada.
Exaltado pelo Clarín como “um filme necessário”, Whisky Romeo Zulu não cabe apenas no figurino da indignação. É mais do que isso. Além de revelar um diretor de luz própria, impede que as manobras escusas que tornam imprevisível o deslocamento aéreo caiam no esquecimento.
# WHISKY ROMEO ZULU
Argentina, 2004
Direção e roteiro: ENRIQUE PIÑEYRO
Elenco: MERCEDES MORÁN, ALEJANDRO AWADA, ENRIQUE PIÑEYRO,CARLOS PORTALUPPI
Duração: 105 minutos
MALA ONDA
Mala Leche
Parece que foi ontem. Mas lá se vão mais de dez anos desde o dia em que Quentin Tarantino atacou de Pulp Fiction, seu mais influente filme. Há que se fazer uma pesquisa de quantas produções desde então macaquearam de alguma forma o estilo coalhado de citações inusitadas, irreverência cínica e violência fútil que fizeram da obra do cineasta um caso à parte. E elas insistem em aparecer. A mais nova chega do Chile, assinada pelo estreante em longa-metragem León Errázuriz. Na busca de um diferencial, o autor abandonou o cinismo em troca de um realismo tão carregado que chega, sem condescendência, às raias do dramalhão.
Dois jovens amigos vivem na periferia de uma Santiago cercada de drogas, violência e muito, mas muito mesmo “concha de tu madre”, o correspondente latino ao “mother fucker” americano. O ambiente torna-se ainda mais pesado com as crises familiares, as rupturas amorosas, os assaltos à mão armada e os crimes à queima-roupa. Sem perspectiva de futuro, os dois neófitos do crime sonham em comprar uma arma que lhes permita entrar definitivamente pela porta da frente da marginalidade. Na trilha do objeto do desejo, Mala Leche brinda o espectador com personagens caricatos, como o vilão gago e o traficante doidão boa praça. Quando finalmente conseguem a arma, os dois amigos protagonizam uma cena xerox do início de Pulp Fiction. Curiosamente, é a melhor cena do filme.
Sem o humor do filme de Tarantino, nem o artesanato de Cidade de Deus ou o foco social de Amores Brutos, Mala Leche patina com uma impositiva câmera na mão, tão nervosa quanto inócua. O mais interessante é o pano de fundo, o cenário por onde os dois amigos trafegam revelando um Chile desprotegido dos propagados avanços econômicos. Talvez fosse o caso de León limpar o primeiro plano da sombra de Tarantino para mergulhar numa realidade muito mais próxima de seus olhos.
# MALA LECHE
Chile, 2004
Direção e montagem: LEÓN ERRÁZURIZ
Elenco: JUAN PABLO OGALDE, MAURICIO DIOCARES, ADELA SECALL
Duração: 101 MINUTOS