Críticas


A GAROTA DE FOGO

De: CARLOS VERMUT
Com: BARBARA LENNIE, LUIS BERMEJO, JOSÉ SACRISTÁN
08.04.2016
Por Marcelo Janot
O bizarro e o inusitado são tratados com realismo e uma elegante sobriedade que lembra Almodóvar

Luis (Luis Bermejo), um professor de literatura desempregado, tenta realizar o excêntrico desejo de sua filha adolescente, que está com os dias contados em virtude de uma leucemia: comprar-lhe uma roupa igual à de uma personagem de desenho animado japonês que ela tanto cultua. O detalhe é que o vestido, assinado por uma famosa estilista, custa a bagatela de 7 mil euros. Desesperado, ele está prestes a quebrar uma vitrine para roubar uma joalheria quando alguém do alto do prédio vomita em cima de sua cabeça. O vômito é o que conecta sua história à de Bárbara (Bárbara Lennie), uma bela mulher com distúrbios mentais que seu marido psiquiatra não consegue curar. Depois de um prólogo em que é repreendida pelo professor na escola, ela aparece pela primeira vez adulta amarrando os sapatos do marido, que a trata como criança numa espécie de jogo de submissão.

O bizarro e o inusitado são tratados em “A garota de fogo”, segundo longa do diretor e roteirista Carlos Vermut, com realismo e uma elegante sobriedade que lembra o Almodóvar de filmes como “A pele que habito” e “Má educação”. Parte do sucesso se deve ao ótimo desempenho dos dois protagonistas e do veterano José Sacristán, que domina o terceiro ato. Os personagens e o enredo vão sendo desenvolvidos simultaneamente em ritmo lento, graças a um meticuloso trabalho de montagem calcado em elipses que criam uma atmosfera de crescente mistério, junto a um argumento que se vale de elementos do cinema noir, com direito a femme fatale, traições, chantagens e crimes. Tudo isso devidamente contextualizado no cenário de crise econômica e política da Espanha contemporânea. A narrativa é pontuada por ligeiros comentários críticos, como a Constituição Espanhola sendo simbolicamente escolhida como o lugar para se esconder dinheiro numa biblioteca por ser “um livro que ninguém lê”.

Mas a chave para a compreensão desse universo em que as atitudes amorais são justificadas pelas necessidades dos personagens está na fala de um deles, que utiliza as touradas como exemplo do “eterno conflito” de um povo que se divide entre a razão e a emoção. As touradas seriam a representação da luta entre o instinto e a técnica, entre a emoção e a razão. Por isso deveriam aprender a lidar com os instintos como se fossem touros, para que não se destruam.



(Publicado originalmente em O Globo no dia 01.04.2016)

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