Há vários filmes dentro de “Ave, César!”, de Joel e Ethan Coen. Um deles se chama “Ave, César!”, um épico bíblico na linha de “Ben Hur”, estrelado pelo galã canastrão Baird Whitlock (George Clooney). Estamos no início dos anos 1950, e, para que os grandes estúdios cumprissem com eficiência seu papel de fábrica de sonhos, os bastidores tinham que ser controlados a mão de ferro por figuras como Eddie Mannix (1891-1963), que durante quatro décadas trabalhou na MGM como o executivo que tinha que administrar orçamentos, controlar egos e resolver pepinos envolvendo a carreira e a vida das estrelas.
No filme dos Coen, Mannix é vivido por Josh Brolin, e a dimensão do seu cargo no fictício Capitol Studios pode ser medida pelo subtítulo do “Ave, César!” bíblico: “Um conto sobre Cristo”. Católico fervoroso, daqueles que se confessam diariamente, é Mannix o Jesus Cristo metafórico que precisa operar milagres para manter a ordem e satisfazer seu “Pai” e patrão, o Todo Poderoso dono do estúdio. Sua fé se manifesta na devoção que tem pela “religião hollywoodiana”.
Cada imprevisto que Mannix tem que resolver permite que os Coen revivam nostalgicamente, em tom de homenagem, mas sem deixar de lançar um olhar crítico e reflexivo, a Era de Ouro de Hollywood. A reconstituição de época impecável e a fotografia de Roger Deakins nos transporta para a filmagem de musicais com números aquáticos como os de Esther Williams ou de sapateado como os de Gene Kelly. Que aparecem na íntegra, permitindo que o espectador tenha tempo para adentrar aquele universo. A homenagem se estende às pontas de astros do presente, como Scarlett Johansson e Channing Tatum, e outros que sumiram, mas permanecem vivos na mitologia hollywoodiana, como o Highlander Christopher Lambert.
O filme praticamente se resume a gags cômicas, algumas sensacionais, como o encontro de Mannix com líderes religiosos para ouvir a opinião deles sobre a representação de Jesus Cristo, outras hilárias, como a dificuldade de um diretor para fazer um jovem astro de filmes de caubói acertar sua fala num papel dramático. Costurando tudo há a história do sequestro de um astro e que envolve um grupo de roteiristas comunistas, em tom quase pastelão, mas dotada de humor inteligente e acima da média.
Os irmãos Coen construíram uma trajetória milagrosa na meca do cinema que os permite, em pleno século 21, contar com orçamentos generosos e liberdade artística para realizar filmes como esse, que fogem totalmente à fórmula. A melhor homenagem que “Ave, César!” presta a Hollywood é reverenciar seu passado apontando um caminho para o futuro.
Publicado originalmente em O Globo de 14.04.2016