Críticas


TARTARUGAS PODEM VOAR

De: BAHMAN GHOBADI
Com: SORAN EBRAHIM, AVAZ LATIF, SADDAM HOSSEIN FEYSAL, HIRESH FEYSAL RAHMAN
29.07.2005
Por Carlos Alberto Mattos
ESPERANÇA DE PERNAS CURTAS

Longe da frente de guerra e dos centros de decisão mesmo periféricos, em algum ponto do território iraquiano perto da fronteira com a Turquia, às vésperas da invasão americana, uma comunidade curda não tem muito o que fazer além de esperar as novidades que chegam pela televisão. Mas a TV de Saddam Hussein controla o noticiário, assim como proíbe os canais de dança e sexo. Muitos torcem pela chegada de “Mr. Bush”, que parece ter o mundo nas mãos, aí incluído um porrete para derrubar o ditador responsável por uma sistemática perseguição à identidade curda. (Vale lembrar que o extermínio químico de curdos em Halabja, em 1988, serviu como um dos maiores pretextos históricos para a invasão do Iraque em 2003).



Uma antena parabólica seria tão ou mais bem-vinda que um caminhão de comida no cenário de Tartarugas Podem Voar. Quem sai para providenciá-la é o esperto “Satelliet”, líder dos meninos do lugar. Por saber arranhar o inglês, ele é instado a traduzir os telejornais da CNN. É ele também que organiza as brigadas de garotos para desmontar minas plantadas pelas milícias de Saddam e recolher sucata bélica para revender. As crianças formam uma sociedade paralela à dos velhos, agindo com oportunismo nas franjas de um conflito anunciado.



Dono do pedaço, “Satelliet” ambiciona também conquistar as atenções da doce Agrin, menina traumatizada por uma agressão de soldados iraquianos que a tornaram uma adulta precoce e deprimida. Ela vive com Hengao, o irmão mutilado por uma mina, e o pequeno Pasheo, menino cego que se passa por seu irmão, mas tem com ela outro e dramático grau de parentesco. As relações entre essas crianças, um misto de desconfiança e cumplicidade, ocupa o centro nevrálgico do filme do curdo-iraniano Bahman Ghobadi.



Mais de um significado tem o título. Literalmente, é de uma ironia cruel: refere-se à semelhança das crianças mutiladas com tartarugas. Apesar das limitações físicas, elas aprendem a se mover com espantosa desenvoltura. Como metáfora, pode-se entender a capacidade de sobrevivência dessas criaturas alijadas do mundo tecnológico, do qual só recebem os detritos (inclusive detritos de informação). Hengao, o garoto sem braços, parece ter a faculdade de prever o futuro – e de fato anuncia a chegada da guerra antes de qualquer acesso local à mídia.



Impregnado de fatalismo desde as imagens de abertura – uma menina se atira de um precipício –, Tartarugas Podem Voar se desenrola como um flashback nascido da morte, canto gritado de crianças condenadas numa terra-de-ninguém. Primeiro filme rodado no Iraque durante a ocupação americana, narra um círculo infernal onde a esperança tem pernas muito curtas. As crianças chegam a comemorar a coleta do braço de alguma estátua derrubada de Saddam, mas a entrada das forças invasoras está longe de sinalizar a libertação almejada.



Ligado pelo umbigo ao nascimento de um cinema curdo, Bahman Ghobadi estudou o ofício em Teerã e fez diversos curtas antes de integrar as equipes dos iranianos Abbas Kiarostami (O Vento nos Levará) e Samira Makhmalbaf (O Quadro-Negro), que por sua influência foram filmados no Curdistão. Sua estréia no longa com Tempo de Embebedar Cavalos foi celebrada em todo o mundo, ganhou o Prêmio Caméra d’Or em Cannes e foi indicado ao Oscar de melhor filme estrangeiro. Esse, assim como Exílio no Iraque, permaneceram restritos, no Brasil, à Mostra de Cinema de São Paulo. Daí que o lançamento de Tartarugas Podem Voar ser um evento considerável para o mercado brasileiro.



Logo esse petardo, que não conta com os relativos “refrescos” de estética do primeiro nem o alarido musical do segundo. Aqui a dor, a decepção e o infortúnio estão à flor da pele, embora um humor inesperado às vezes brote como flores do pó. Como sempre, é um cinema de fronteira, encravado entre a simplicidade da produção e a excelência da direção, interpretado por amadores com o prodigioso talento naturalista a que nos acostumou o cinema iraniano.



A exacerbação dramática pode incomodar em alguns momentos, mas deve ser aceita como traço cultural, parte da “guerra santa” particular que vive cada curdo em sua busca de voz, identidade e reconhecimento. Desde a infância, todos os dias.





# TARTARUGAS PODEM VOAR (LAKPOSHTHA HÂM PARVAZ MIKONAND)

Curdistão/Irã/Iraque/França, 2004

Direção, roteiro e desenho de produção: BAHMAN GHOBADI

Fotografia: SHAHRAM ASSADI

Montagem: MUSTAFA KHERQEPUSH, HAYDEH SAFI-YARI

Música: HOSSEIN ALIZADEH

Elenco: SORAN EBRAHIM, AVAZ LATIF, SADDAM HOSSEIN FEYSAL, HIRESH FEYSAL RAHMAN, ABDOL RAHMAN KARIM, AJIL ZIBARI

Duração: 98 minutos

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