Críticas


PAULINA

De: SANTIAGO MITRE
Com: DOLORES FONZI, OSCAR MARTÍNEZ, ESTEBAN LAMOTHE
16.06.2016
Por Marcelo Janot
A complexidade do retrato social tecido pelo roteiro é tamanha que produz sentimentos ambíguos em relação aos personagens.

Em um plano sequência de cerca de oito minutos que serve como prólogo em "Paulina", pai e filha conversam sobre a decisão dela de abandonar o doutorado e uma promissora carreira como advogada para dar aulas de política em uma comunidade rural na fronteira do Paraguai com o Brasil. Enquanto Fernando lamenta, argumentando que se trata de “uma fantasia romântica de uma mochileira”, Paulina ironiza a postura conservadora dele, que em nada lembra o ex-militante de esquerda engajado em causas sociais.

Logo ela será confrontada com uma realidade bem distinta da imaginada: além do desinteresse dos alunos, é estuprada por um grupo de rapazes locais ao voltar da casa de uma amiga. O crime não abala o idealismo da jovem, que ao regressar às aulas foca no tema dos Direitos Humanos, e paralelamente busca entender por conta própria as motivações de seus agressores, se recusando a denunciá-los à polícia.

Como a dificuldade de colocar-se no lugar do outro é o ponto nevrálgico do filme de Santiago Mitre (baseado em “La patota”, longa argentino de 1960), entender a decisão de Paulina de querer conviver com as marcas da violência que sofreu é um exercício e tanto para o espectador. Especialmente porque, nesse caso, ela beira o autoflagelo. Mitre e o corroteirista Mariano Llinás plantam, ao longo da trama, indícios que corroboram o discurso de Paulina de que “quando há pobres no meio a Justiça não busca a verdade, busca culpados”, mas isso não é suficiente para que se apague a impressão de que a protagonista está levando seu idealismo, contaminado por um sentimento de culpa de classe, a um nível paradoxal.

Portanto, se por um lado sua decisão de não denunciar pode ser criticada, já que faz com que criminosos fiquem impunes numa sociedade machista que ainda vê com naturalidade a agressão contra a mulher, por outro a complexidade do retrato social tecido pelo roteiro é tamanha que produz sentimentos ambíguos em relação aos personagens.

Tome-se o exemplo de Ciro, o principal agressor. Ele é apresentado tomando um pé na bunda de Vivi, sua “quase namorada”, porque ela quer sair, se divertir, e não faz o tipo dele, que seria mais caseiro e a fim de compromisso. Como na cena seguinte ele é zoado pelos amigos enquanto observam Vivi praticando sexo oral com outro sujeito, de certa forma Ciro pode ser visto como alguém que precisa dar uma resposta de acordo com o que essa sociedade que objetifica a mulher espera dele.

A atriz Dolores Fonzi, que interpreta Paulina, deixa transparecerem as dores física e psicológica que o trauma lhe provoca, mas sem nunca parecer vitimizada ou com uma carga melodramática exagerada. Se o tema do filme é urgente e atual, a discussão que ele promove talvez não fosse tão intensa se ela não tivesse encontrado um tom de interpretação tão exato para sua personagem.



Publicado originalmente em O Globo, Segundo Caderno, 16.06.16

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