Em seu mais recente filme, O Silêncio do Céu, o diretor Marco Dutra abandona – com vantagem -as alusões ao sobrenatural que faziam parte de seus longas anteriores (Trabalhar Cansa e Enquanto eu era vivo), mas mantém a discussão sobre situações perturbadoras em relações familiares. Desta vez o filme parte de uma ocorrência bastante insólita: o estupro de uma mulher presenciado pelo marido, sem que ela perceba que ele viu o acontecido, seguindo-se o silêncio de ambos sobre o fato. Ele espera que ela fale, mas ela se cala.
Para tornar verossímeis as atitudes de ambos os personagens o roteiro omite (por algum tempo) algo que teria se passado antes da ação começar, mas há coerência nisto pelo fato de que o foco da narrativa é inicialmente conduzido pelo marido - que desconhecia tal antecedente. Ao assumir o ponto de vista dele, não só como condutor de boa parte da ação atual, o filme também acrescenta a voz do personagem fazendo confissões e reflexões em off sobre seus sentimentos, temores e lembranças. O recurso da voz “interior” paralela às imagens é sempre arriscado no cinema, mas não neste caso, já que escutamos a voz do marido mencionando vivências que não guardam relação direta com o que está sendo visto, o que provoca a atenção redobrada do espectador que vai como que "participar' dos eventos, identificado com este personagem. Mas em algum momento, o ponto de vista vai mudar, enriquecendo ainda mais a discussão sobre o não-dito por ambos.
A direção de Marco Dutra é muito eficiente na criação de um clima de tensão moderada e sem exageros. E, principalmente, sem recorrer ao fantástico menos satisfatório de seus outros filmes. A narrativa visual é enxuta sem menosprezar a elegância dos planos, beneficiando-se do - e fazendo jus ao - ótimo roteiro, escrito a três mãos, com participação do autor do livro original em que o filme se baseou. Fica a impressão de que o romance deve ser tão bom quanto esta versão para o cinema.
Os atores colaboram enormemente para tornar o desenvolvimento da trama convincente: Leonardo Sbaraglia tem um dos seus melhores desempenhos dentre os filmes nos quais pudemos vê-lo atuar desde Plata Quemada, e Caroline Dieckman consegue transmitir eficazmente o que pode estar se passando por trás do silêncio de sua personagem.
Cabe ainda assinalar que, de certa forma, Era el Cielo (título original), guarda alguma relação com Sob o Domínio do Medo (1971), de Sam Peckinpah, embora com uma forma radicalmente diversa de expor um estupro, já que, aqui, a câmera jamais escorrega na intenção de erotizar a violência do ato (o que havia no polêmico filme de Peckinpah), mostrando-se mais adequado - e até mesmo ético na abordagem.
O Silêncio do Céu, embora falado em grande parte em espanhol (a ação se passa no Uruguai) recebeu o prêmio do Júri e o prêmio da Crítica no Festival de Gramado de filme brasileiro neste ano, além de ter sido premiado na categoria Melhor Som. De fato, a ambientação sonora colabora bastante nesta obra instigante sobre silêncios, mas também a edição e fotografia merecem nosso reconhecimento.