Na quarta vez em que adapta uma obra do amigo Gabriel García Márquez (depois de Erêndira, A Bela Palomera e a série de TV Alugo-me para Sonhar), Ruy Guerra volta a propor um diálogo de alto nível com o espectador. O Veneno da Madrugada é um filme típico desta nova fase de sua obra, em que a matéria literária original não é uma meta a alcançar, mas uma plataforma de onde ele se lança em vôo próprio. Assim foi com Estorvo, baseado em Chico Buarque, ticket para uma viagem através dos labirintos da mente do protagonista.
Desta vez, ao transpor o romance La Mala Hora (o título em espanhol se refere à hora da morte), Guerra quebra a linearidade da história de Gabo, relatando em três tempos uma intriga político-conjugal numa pequena aldeia de um país não identificado, supostamente da América Latina. Apelando às teorias da física quântica, Guerra dispara as flechas do tempo em regime de falsa simultaneidade. Vemos os fatos se desenrolarem três vezes consecutivas. As elipses vão se preenchendo progressivamente, mas com algumas diferenças que parecem mudar o rumo dos mesmos acontecimentos. A “realidade” nos chega, então, como um feixe de possibilidades, em lugar de uma seqüência única de ações. O tempo como fluxo é anulado.
Dito assim, soa mais complicado do que está na tela. Na sucessão de repetições e diferenças, o espectador que desligar o celular e renunciar à pipoca compreenderá sem problemas a proposta do diretor. Mesmo assim, O Veneno da Madrugada continua a ser um filme exigente, sob outros aspectos. Em vez de clareza, temos um mundo de sombras, frestas e buracos negros, onde devemos circular com uma lanterna precária. A ausência de céu, a chuva constante (desde antes da primeira imagem), a preferência de Ruy Guerra e Walter Carvalho pelos tons terrosos e pelas silhuetas, todos os elementos estéticos remetem à claustrofobia.
A opção é expressionista. Para caracterizar o aprisionamento das personagens num ciclo de segredos, paixões reprimidas e denúncias temidas, Guerra apela a algumas sinestesias de difícil representação cinematográfica. As pessoas falam obsessivamente sobre maus-cheiros; o Alcaide vivido com ênfase expressionista por Leonardo Medeiros padece de uma dor-de-dente irremissível; todos suam muito e os cenários transpiram a umidade da chuva ininterrupta. Da mesma forma, a trilha sonora é ocupada por um concerto de ruídos que incomoda belamente. A sensação é de habitar uma espécie de instalação, cujo autor tenta nos envolver por todos os sentidos. Embora sempre a partir de operações intelectuais.
Daí a busca de uma atuação não naturalista, onde os atores freqüentemente dividem mal suas frases e, com isso, sabotam o tal projeto de envolvimento. O elenco é uma magnífica colagem de veteranos “guerreanos” com descobertas recentes. Pena que, atomizados em seus núcleos de ação, não rendam um trabalho de conjunto mais marcante. De qualquer forma, vale destacar a odisséia deitada de Amir Haddad e a serenidade intensa de Juliana Carneiro da Cunha, que acrescenta outra clássica cena de nudez ao currículo de Ruy Guerra.
Com seus planos-seqüência cheios de verdade cênica e sua estrutura narrativa incomum, O Veneno da Madrugada é mais um deleite para os admiradores do cinema de Guerra. Não deixa, porém, de ser intrigante que um autor relativamente popular como García Márquez não inspire filmes populares.
# O VENENO DA MADRUGADA
Brasil/Argentina 2005
Direção: RUY GUERRA
Roteiro: RUY GUERRA, TAIRONE FEITOSA, LEONARDO GUNDEL, baseado no romance La Mala Hora, de GABRIEL GARCÍA MÁRQUEZ
Produção: BRUNO STROPPIANA
Fotografia: WALTER CARVALHO
Montagem: MAIR TAVARES
Direção de arte: MARCOS FLAKSMAN
Música: GUILHERME VAZ
Elenco: LEONARDO MEDEIROS, JULIANA CARNEIRO DA CUNHA, FÁBIO SABAG, ZÓZIMO BULBUL, JEAN-PIERRE NOHER, REJANE ARRUDA, AMIR HADDAD, EMILIO DE MELLO, MURILO GROSSI, RUI REZENDE, TONICO PEREIRA, RUI POLLANAH
Duração: 118 minutos