Críticas


FALA COMIGO

De: FELIPE SCHOLL
Com: KARINE TELES, TOM KARABACHIAN, DENISE FRAGA, EMÍLIO DE MELLO
13.07.2017
Por Luiz Fernando Gallego
Um insólito “triângulo” entre uma paciente, sua terapeuta e o filho da terapeuta: uma boa ideia nem sempre bem desenvolvida.

Angela, uma mulher madura e sem maiores atrativos, recebe telefonemas silenciosos todas as noites. O silêncio do outro lado da linha propicia que ela fantasie, de acordo com seus desejos, quem estaria ligando. E ela quer acreditar que possa ser o marido que a abandonou recentemente e que talvez esteja envergonhado de pedir para voltar para ela.

Mas quem liga é Diogo, o filho adolescente da terapeuta de Angela. Ele pega os números de telefone das pacientes de sua mãe e liga para várias. Provavelmente Angela deve ser aquela que mais prolonga as ligações sem desligar de imediato, já que quem ligou permanece mudo. Por estar muito carente, ela fica falando com quem supõe ser seu ex-marido, mesmo que nada lhe seja respondido. O contato demorado, por outro lado, atende ao desejo de Diogo no sentido de se masturbar enquanto a ligação se prolonga e ele escuta uma voz de mulher falando, mesmo que se dirigindo a outro homem ausente.

Curiosamente, o filme não mostra a relação de Angela com sua terapeuta nesta fase da história, sendo bem difícil imaginar que uma pessoa tão fragilizada por um abandono recente não conte nas sessões que tem recebido telefonemas silenciosos que está atribuindo ao ex-companheiro. Mas o roteiro não quis nos mostrar se isto acontecia, ou se Angela seria aquele tipo de paciente que vai às sessões mas também fica em silêncio. Tal silêncio de Angela surge na única vez que vemos a paciente no divã, com a terapeuta sendo mostrada dentro do estereótipo dos “psicanalistas de charges”, com bloquinho e caneta na mão para fazer anotações durante o atendimento - o que raramente deva acontecer nas terapias reais. Nesta cena a paciente omite algo importante que lhe acontecera, mas já depois de ter identificado que quem lhe telefona tem o mesmo sobrenome de Clarice, a terapeuta. Então ficamos mesmo sem elementos para saber como se dava o relacionamento entre Clarice e Angela.

Já a conduta de Clarice fora do consultório, como mãe e esposa, fica bem evidenciada logo no início numa clássica cena de jantar em família. Quase ninguém conversa (e mais tarde, Marcos, o marido, fará tal queixa à esposa), exceto a filha menor que diz estar com medo de “apendicite” por conta de uma dorzinha de barriga. A mãe, nesta hora, se conduz como (má) terapeuta, resumindo a atitude da filha como “hipocondria”, sem se perguntar (se fosse uma boa profissional, mas principalmente como mãe) por que a filha estaria tão assustada com sintomas aparentemente banais.

Diogo, por seu lado, está sempre com fones no ouvido e, ao mesmo tempo, lê enquanto come: já teria desistido de buscar a atenção da mãe? Quando vai pedir um cheque para pagar inscrição no vestibular, ela não o atende de pronto. Talvez quando ele precisou se submeter a uma cirurgia de apendicite no passado tenha recebido atenção da mãe, e por isso a irmãzinha lhe peça para ver a cicatriz dele e passa até a desejar estar com a mesma doença para auferir os mesmos cuidados.

Não é preciso ter muita imaginação para o espectador perceber que Angela vai identificar que quem lhe telefona é o filho da terapeuta, e a partir daí o roteiro vai se desenvolver dentro de uma dramaturgia nem sempre satisfatória.

É interessante que o silêncio dos telefonemas de Diogo funcionem de modo análogo ao “silêncio terapêutico” de tantas técnicas psicanalíticas que visam induzir à verbalização por parte dos pacientes - enquanto o analista se mantém ao máximo dentro de uma “regra de abstinência” quase em mutismo.

Também os “silêncios” de Clarice fora do consultório, como mãe, poderiam oferecer uma compreensão para as atitudes de Diogo - 17 anos, quase 18, nos dias de hoje no Rio de Janeiro – que precisa telefonar para pacientes de sua mãe como forma de excitação sexual para se masturbar. Ele erotiza por meio de um fetiche sua relação edipiana mal elaborada pela distância que a mãe parece ter em relação aos filhos?

Ou seja, o argumento nos traria um insólito “triângulo”, não necessariamente “amoroso”, entre uma paciente, sua terapeuta e o filho da terapeuta, sendo que as duas extremidades aproximam-se pela lacuna que o vértice (terapeuta/mãe) significa para ambos?

É uma pena que a construção da personagem da terapeuta mostre uma pessoa tão despreparada para suas funções, dentro e fora da profissão, oferecendo poucos elementos para compreendermos melhor suas dificuldades pessoais. Ao personagem de seu marido ainda são dados menos elementos de caracterização, exceto quando ele verbaliza insatisfações conjugais. Com isto, desperdiçam-se o que atores como Denise Fraga e Emílio de Mello poderiam oferecer para maior verossimilhança nas situações. Karine Teles e Tom Karabachian fazem bem aquilo que podem fazer com seus personagens, aos quais o roteiro dá mais tempo em cena: são personagens bem interessantes na situação de base, mas nem sempre verossímeis no desenvolvimento. Anita Ferraz (a irmã menor) e Daniel Rangel (Guilherme, um amigo de Diogo), em personagens coadjuvantes, estão bem, ainda que a intervenção de ‘Guilherme’ no enredo também fique como uma ponta solta inserida sem maior organicidade com o todo. Mas o pior de tudo é o desfecho que parece improvisado na base “o filme tinha mesmo que se encerrar” e foi assim porque o roteirista assim quis. Forçado.

Em filmes de outros diretores, o roteirista, agora estreando na direção, já demonstrara ter boas ideias com desenvolvimentos pouco satisfatórios, e o mesmo problema se repete neste Fala Comigo. Na direção, o abuso de grandes planos nos rostos dos atores nem sempre se justifica, exceto por mostrar a sensibilidade de Karine Teles, premiada como melhor atriz no Festival do Rio 2016. Mas para ter sido o melhor filme no mesmo festival, fica a impressão de que a mostra não foi das mais empolgantes.

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Outros comentários
    4589
  • marcos
    22.07.2017 às 18:08

    É direito do crítico não gostar do filme, mas suas afirmações sobre o comportamento das duas personagens centrais, enquanto psicanalista e paciente, demonstram um total desconhecimento de como essa relação ocorre na vida real. Pacientes nem sempre revelam em sessões de análise fatos importantes em suas vidas, e às vezes podem até mesmo mentir sobre os mesmos. Assim como um ótimo profissional psicanalista não necessariamente se revela uma pessoa "preparada" fora do consultório. Comportamentos nas vida pessoal e profissional não necessariamente se cruzam. Uma crítica menos embasada em opiniões pessoais do autor sobre tais comportamentos também ficaria melhor desenvolvida.
    • 4590
    • Luiz Fernando Gallego
      23.07.2017 às 05:40

      Resposta do crítico: Obrigado por escrever, Marcos. Você começa dando ao crítico o direito de não gostar de um filme. Discordo no sentido de que um crítico não tem esse direito pura e simplesmente: em sua crítica ele deve dizer o porquê de ter apreciado ou não um filme. Se é uma crítica profissional não basta dizer “gostei”, “não gostei”. E no caso deste filme, os motivos que encontrei para apontar deficiências do roteiro foram descritos. Você supõe meu “total desconhecimento de como se passa a relação paciente–analista na vida real”. O autor da crítica, muito antes de ser membro da Associação de Críticos de Cinema do RJ, é membro da Associação Psicanalítica Internacional fundada por S. Freud, trabalhando em consultório há mais de 40 anos, portanto não creio que sua assertiva sobre meu conhecimento do que se passa nos consultórios de psicanálise seja pertinente. O que, na verdade, nem importa: importa o que acontece no filme. Se você reler a crítica, verá que há argumentos sobre como os personagens são mostrados na tela: o que está escrito é que quando vemos a paciente omitir para analista porque está com um esparadrapo na mão (tomou soro endovenoso depois de ter ingerido remédios e álcool, ou seja, tentou se matar) a paciente já sabe que quem a socorreu tem o mesmo sobrenome da sua analista e, como vemos em seguida, ele vai preferir, em vez de narrar o ocorrido, investigar a casa da analista (o que em psicanálise se chama “acting-out”) para tentar saber que possível parente da analista a levou para o hospital. Só poderia ser a mesma pessoa que lhe telefonava silenciosamente e a quem ela, querendo acreditar anteriormente que fosse o marido que a abandonou, comunicara o que havia ingerido e, ao saber pela médica do hospital o nome de quem a salvou, deduziu que seria um nome de homem, parente da analista. O que foi apontado é que esta única cena é insuficiente para sabermos se em outras situações a paciente omitia coisas da analista, o que não parece plausível se ela fala e fala e fala durante os telefonemas mudos querendo crer que seria o ex-marido. Não contaria, satisfeita à analista que o marido poderia estar ligando para ela? Isso é uma hipótese que também nem é tão pertinente, pois o que apontei é que o filme não mostra o relacionamento delas no setting de análise, exceto neste momento, já excepcional, do que se passa entre elas, com uma forte situação extra-analítica: um nome de homem com o mesmo sobrenome da analista ligando para a paciente, “deixando” que ela marcasse um encontro, escutando que ingerira substâncias nocivas e levando-a ao hospital, desacordada. Por outro lado, o filme faz questão de mostrar a psicanalista como mãe que não atende mais prontamente ao pedido do filho quanto a um dinheiro para inscrição no vestibular e se mostra impaciente com a filha que reclama, assustada, de suas pequenas dores na barriga. Uma mãe que também teria, supostamente, algum preparo como profissional de saúde mental e usa um termo técnico como “hipocondria” para uma filha de seus dez anos! Lamento dizer, mas o que o filme mostra é essa mãe distante do papel de acolhimento e tentativa de acalmar a filha, misturando termos profissionais com conversa familiar. Se o filme não pretendia mostrar essa personagem assim, lamento, mas mostrou. Por outro lado isto poderia ser a coisa boa que a ideia original tinha, mesmo que sem intenção: o silêncio do rapaz no telefone como algo semelhante ao “silêncio analítico” (regra de abstinência) que induziria à fala do paciente. Por um lado, o rapaz “busca” com quem a mãe fala quando atende pacientes porque há uma espécie de “silêncio materno” na distância que a mãe tem em relação aos filhos quando é vista fora do consultório. E volto a insistir: que pena que ela não é vista no consultório fora do momento em que o enredo já evoluiu para a tentativa de suicídio, omitida por parte da paciente porque já quer saber por conta própria quem lhe telefonava em silêncio e a salvara da tentativa de suicídio, claramente culpado pela “brincadeira” ter tido esse destino de risco de vida. O que o filme teria de melhor é o que chamei de “triângulo” entre o silêncio do rapaz no telefone, algo análogo ao silêncio possível da analista na prática profissional, aliado ao distanciamento da mãe em relação ao filho, enfim, formando um triângulo de atuações (acting-outs) entre o filho e a paciente. Mas pode ser que o filme tenha atirado mal no que conseguia ver e acertado involuntariamente neste aspecto. E nem comentamos os traços de uma certa dose de perversão na atuação do rapaz, um jovem com inibições sexuais a ponto de precisar ligar – logo para pacientes da mãe – e se masturbar, “colecionando” o produto da masturbação em pastas, uma caracterização mais heterodoxa ainda. Por que para as pacientes da mãe? Claro que o que ele fazia tinha mais a ver com a distância da mãe, de certa forma uma coisa agressiva para com sua mãe e seu trabalho. Quanto à sua assertiva sobre disparidades entre a pessoa do psicanalista dentro e fora do consultório, como psicanalista sou obrigado a divergir: falhas humanas todos nós temos em quaisquer situações, mas acho que se as vidas profissional e pessoal não se cruzam minimamente, em alguma das duas situações este analista tem um “falso self”. Ainda assim, isso não importa: importa mais uma vez e sempre o que o filme mostra: no caso, como mãe aquela personagem é vista como insuficiente e distante – até que perde as estribeiras e vai discutir com a (ex?)paciente, um desastre total como profissional: ela fala que a paciente “está sumida” (ou “tem faltado”, não lembro exatamente), portanto ela não procurou entrar em contato com a paciente quando isto começou a acontecer, não foi ela quem encerrou o contrato analítico etc etc. Confirma-se assim uma péssima profissional já mostrada dentro do estereótipo de piadas em que analistas atendem fazendo anotações durante a sessão com bloquinho e caneta na mão, o que não é considerado boa conduta profissional de psicanalistas bem formados, mas que o filme, tolamente, mostra. Obrigado por permitir detalhar mais estes aspectos mesmo que já estejam bem expostos no texto que escrevi.