Poucas vezes no cinema brasileiro mais recente um diretor foi tão feliz em seu primeiro longa-metragem. Fabio Meira, também autor do roteiro, desenvolve com extrema delicadeza uma situação profundamente estranha e incômoda para uma jovem em início da puberdade: a descoberta de que seu pai tem “outra família” com agravante de haver uma filha da mesma idade que ela e com o mesmo nome, Irene.
O que poderia agravar a crise de identidade que já é comum em qualquer adolescência transforma ainda mais a ambivalência que não elimina outras características frequentes da idade: a Irene da família com melhor “aparência” socioeconômica não deixa de querer ser admirada pelo pai (que também lhe parece um traidor) assim como não deixa de externar conflitos para com a mãe. Freud explica. Mas nada disso é enfatizado com tintas fortes ou mão pesada. Tudo segue um ritmo interiorano próprio do lugar onde a ação se passa - e também de um tempo mal definido, mas que, pelas músicas usadas, pode ser a década de 1950 (“Índia” e “Meu Primeiro Amor”) ou o início dos anos 1960 (“Banho de Lua” e uma versão de música americana cantada por Rita Pavone). Não se vê nenhum aparelho de televisão nas casas e ainda há um cinema, bem precário, típico de cidadezinha distante dos grandes centros em uma época já também distante dos dias atuais.
A câmera capta de modo bucólico a paisagem rural emoldurando a garotada em banhos de rio ou sob as árvores onde rolam os primeiros beijos e amassos. Dentro das casas, especialmente na da Irene mais abonada, a direção usa (e às vezes abusa um pouco) das molduras das portas enquadrando duplamente as reuniões familiares, os almoços, além das meninas nos quartos (essa Irene é filha do meio). Já na casa mais simples da “outra” Irene, a outra mãe, costureira, trabalha na copa-cozinha e a casa menor parece um pouco mais “aberta”, menos emparedada ou enquadrada.
Além da fotografia, trilha musical discreta e ambientação (direção de arte), os atores colaboram muito para o resultado afetuoso e sem pieguice que o filme atinge. Teuda Bara como a empregada Madalena tem a dose exata de espontaneidade e bonomia, enquanto Marco Ricca faz o “senhor de duas casas” sem caricaturar o machismo evidente da situação - nada rara naqueles tempos - na qual o chefe de família vivia “viajando” para alternar entre um e outro lugarejo.
As duas 'Irenes', Isabela Torres e Priscila Bittencourt, têm ótima química, sendo que Priscila tem mais oportunidades, já que o filme a toma como personagem-guia. E a atriz corresponde plenamente ao que lhe é exigido, despertando facilmente a identificação da plateia com seu drama adolescente. Ela transmite a cada instante como sente o peso de ter um segredo que - bem no início - vemos que Madalena conhece e a aconselha a ficar quieta, oscilando entre a inclinação de “contar tudo” ou distrair-se com assuntos próprios da idade: beijar os garotos, implicar com a irmã mais velha que vai ter baile de debutante, fazer coisas escondidas da mãe, usar roupas mais decotadas etc.
Sem proselitismo algum, o filme assume um viés feminista ao retratar o machismo do pai bígamo, sem, entretanto, criar vilões intensos ou uma horda de “vítimas”.
ATENÇÃO: SPOILER!!!!
Como o filme praticamente toma como guia o ponto de vista de uma das Irenes, só aos poucos vamos percebendo que tudo não deve passar de um “segredo de polichinelo”, estabelecendo o retrato da hipocrisia social, fingimentos e mentiras que só com a cumplicidade da outra Irene poderão ser denunciados por atitudes, mais do que por palavras, no interessante desfecho.