Modelo de "namoradinho da América" de que os anos 80 tanto precisavam, Thomas Cruise Mapother IV aprendeu a voar assim que se percebeu um símbolo de "genro ideal". Ainda galã em fase de aprovação, ele arriscou viver o lado egocêntrico de uma relação fraterna maculada pelo autismo em Rain Man. Repetiu a dose de risco injetando inconformismo na veia na pele enrugada de Ron Kovic, o herói paraplégico de Nascido em 4 de julho. E quando sua ex-senhora Nicole Kidman começou a brilhar mais do que ele, em meados dos anos 90, Cruise se tornou produtor e elegeu uma franquia, calcada na ressurreição da série de TV Missão Impossível, como sua galinha dos ovos de ouro. Deu certo. Tudo! Ou quase tudo, como a terceira aventura do ator como o agente Ethan Hunt deixa crer. O vôo do astro foi emperrado por sua própria fama de divindade pop.
Houve um momento em que Cruise começou a usar a mídia para construir, fora das telas, um personagem impecável, intocável, inatingível. Aí, morreu Mapother IV e canonizou-se a figura asséptica de Tom Cruise, um Michael Jackson de Hollywood, que precisa posar com suas mulheres em público para negar a boataria de sua homossexualidade. Dizem os publicistas do Sprite que imagem é tudo, sede não é nada. Cruise confirmou a tese com sua... sede de privacidade. Tão inalcançável ela era que ele apelou para o único recurso de que um todo-poderoso disporia: a banalização. Daí as superproduções vendidas às custas de seu rosto nos cartazes. Mesmo que estas sejam filmes sobre equipes.
Desde que Brian De Palma dirigiu o genial filme número um da série Missão Impossível, o problema da auto-imolação da imagem pública de Cruise estava em crisálida. J. J. Abrams, o realizador do terceiro filme, encontrou o Cristo recrucificado nos espinhos de sua própria vaidade. Mesmo assim, ele deixou o joio de lado e "adubou" o trigo com a histeria televisiva que herdou dos produtores com quem trabalhou. Isso deixava margem para um desastre estético. Mas Abrams é um diretor prevenido. Tem o salva-vidas do bom-senso na cintura. E um domínio pleno da montagem na mão. É isso que torna MI3 perfeito. O radical controle que Abrams tem da edição: das imagens, do som, da narrativa.
Roteiro fraco vira algo crível quando a aceleração das escorregadias viradas dramatúrgicas é acelerada até uma razoável distância da pilantragem. Tudo é rápido em MI3. Mas é uma rapidez que respeita o pensamento. A racionalidade. E isso não tem nada a ver com o fato dos personagens cruzarem o limite do verossímil. São heróis. E estes, quando não-realistas, não têm obrigação alguma com a verdade mortal, apenas a intermediária condição que separa humanos e demiurgos.
Como sabia que Cruise repousa hoje no extremo reservado ao Divino, Abrams foi inteligente e tratou o ator como costuma comandar Matthew Fox, astro-rei de Lost. Até no corte de cabelo Cruise parece Fox. Mas é nos enquadramentos que se percebe a similaridade. Não dos atores, mas da direção. MI3 é um episódio comprido de um seriado bom, só que narrado com a gramática do cinema. É pipoca dourada em manteiga, que nunca sonhou ser faisão. Daí seu mérito ético, que somado à engenhosidade das seqüências de ação sustenta o entretenimento e abre brechas para se analisar (criticamente) o heroísmo. Ou melhor, a perda dele.
# MISSÃO IMPOSSÍVEL 3 (MISSION: IMPOSSIBLE 3)
EUA, 2006
Direção: JJ ABRAMS
Roteiro: ALEX KURTZMAN, ROBERTO ORCI E J.J. ABRAMS
Produção: TOM CRUISE E PAULA WAGNER
Fotografia: DANIEL MINDEL
Edição: MARYANN BRANDON E MARY JO MARKEY
Música: MICHAEL GIACCHINO
Elenco: TOM CRUISE, VING RHAMES, MICHELLE MONAGHAN, PHILIP SEYMOUR HOFFMAN, LAURENCE FISHBURNE, BILLY CRUDUP, KERI RUSSELL, JONATHAN RHYS MEYERS
Duração: 126 min.
site: www.missionimpossible.com