Raramente um filme recebe o maior prêmio de um festival importante e ao mesmo tempo o prêmio da Crítica (FIPRESCI) e do Júri Ecumênico. Pois foi o que aconteceu com o húngaro Corpo e Alma (título original: Teströl és lélekröl), premiado com o Urso de Ouro em Berlim 2017 quando também fez jus a mais estas duas outras relevantes premiações. É a primeira oportunidade que o público brasileiro está tendo de conhecer uma obra da diretora e roteirista Ildikó Enyedi que não filmava há 18 anos (!). Se possível, guardemos o seu nome.
O filme aborda o encontro entre um homem que tem o braço esquerdo paralisado, chefe de orçamento de um matadouro, e a nova fiscal de qualidade, uma moça tímida, fechada, rígida, com memória prodigiosa, mas com a afetividade de algum modo comprometida. Ao longo do filme saberemos que ela eventualmente se consulta com um provável terapeuta... infantil(!) Desconfortável, o profissional tenta encaminhá-la para um terapeuta de adultos sem que ela aceite.
O enredo é bastante original, oscilando entre comédia amarga e drama romântico com pitadas de ironia. O não-casal central tem à sua volta personagens secundários que emprestam variações à situação de base, com destaque para o de uma psicóloga de seios tão grandes quanto realçados pelas blusas que usa. As entrevistas levadas a cabo por ela são bastante toscas, abordando os primórdios da vida sexual dos funcionários do frigorífico (!) e formulando a pergunta "qual sonho você teve na noite passada?" - uma caricatura da pior psicanálise de botequim (ou “selvagem”, como Freud desqualificou incursões deste tipo por parte de gente despreparada para o ofício).
Uma coincidência bastante peculiar vai dar a partida mais curiosa do roteiro muito bem desenvolvido, bastando que o espectador tolere algumas cenas iniciais no matadouro, daquelas que criam novos vegetarianos. Elas antecipam outro momento tenso que merece ser igualmente tolerado para aguardar o - algo surpreendente, mas coerente - desfecho.
Também surpreende ser este o primeiro desempenho de Géza Morcsányi, até então tradutor de peças russas para o húngaro, diretor teatral e roteirista. A seu lado, a atriz Alexandra Borbély evita qualquer caricatura em que seu desempenho poderia resvalar: é com extrema delicadeza que ela cria uma personagem com traços, diríamos, autistas.
Distante do cinema mais exigente do conterrâneo Bela Tarr, esta produção húngara tem grandes chances de agradar ao público e, pelos prêmios recebidos, agradou à crítica e aos júris de festivais. Também foi o candidato oficial da Hungria ao Oscar 2018 de filme em língua não-inglesa, tendo chegado aos nove pré-selecionados.