Em sua segunda colaboração com Woody Allen, o fotógrafo Vittorio Storaro, conhecido como capaz de pintar com a luz nos filmes, recria em várias cenas, especialmente em exteriores, o Tecnicolor dos filmes americanos da época em que o enredo de Roda Gigante se passa, bem no início da década de 1950.
O plano de abertura é um travelling sobre uma praia lotada em Coney Island, encimada por uma série de lojas, restaurantes, atrações de mafuás e parques de diversões. Se o cinéfilo lembrar das cenas iniciais de Lana Turner em Imitação da Vida na versão de 1959, de Douglas Sirk, não estará longe do que Allen faz aqui: um melodrama chapado, gênero praticamente ausente de sua filmografia até agora, pelo menos de modo tão despudorado. Mas em vez de fazer como Todd Haynes em Longe do Paraíso (2002), sofisticando o melodrama, Allen parece ter preferido mimetizar os dramalhões com Bette Davis na Warner Bros. A interpretação em overacting de Kate Winslet tem tudo a ver. Assim como a personagem de Lana, a de Kate é atriz. Melhor dizendo: foi atriz amadora, tinha pretensões maiores, mas está relegada a trabalhar como garçonete, ambicionando o que seria um verdadeiro milagre de ascensão social e profissional através da relação extra-conjugal com um candidato a dramaturgo interpretado por Justin Timberlake – que, por enquanto, não passa de estudante ganhando a vida como salva-vidas (duplo sentido bem melodramático). Aliás, o personagem dele é também um pouco narrador da história e se anuncia como desejando escrever... melodramas para o palco.
Em seu filme anterior, subestimado pela crítica americana, o belíssimo Café Society, Allen se dividia entre a Hollywood luxuosa dos anos ’30 e uma parte pobre da costa Leste. Desta vez, o enredo enfoca principalmente personagens da classe média bem pobre, uma raridade em filmes "sérios" do diretor. Em Café Society Hollywood aparecia em tons de azul e dourado, mas as cenas com os parentes pobres do personagem central eram vistos em tons de cinza ou marrom. Aqui, os interiores da casa de Humpty (James Belushi, ótimo), marido de Ginny (Kate), surgem iluminados frequentemente por letreiros luminosos do lado de fora das janelas em fortes tons de vermelho ou azul, podendo mudar de cor ao longo da tomada, ou mesmo reduzir a luminosidade podendo chegar a mergulhar no escuro - um recurso fortemente “teatral”, como que feito para os palcos onde Ginny quer voltar a estar. Mas em sua vida real ela jamais desejaria estar - como está - em um melodrama à moda de Tenneesse Williams ou de Eugene O’Neill, só que de segunda ou terceira categoria.
Os diálogos, como de hábito em Allen, são longos e há longas falas para Ginny: por vezes ele usa extensos planos-sequência, mas também não evita o plano/contra-plano quando ela conversa com Mickey (Timberlake), o amante de quem ela espera tudo. Especialmente quando a relação entre eles começa a travar pelo interesse do rapaz em Caroline (Juno Temple, também ótima), enteada de Ginny, recém-chegada a Coney Island depois de um casamento fracassado.
Em um de seus discursos intelectualizados, o estudante de teatro menciona a “falha trágica” dos personagens das tragédias gregas, ou seja, a responsabilidade que eles têm pelo que lhes acontece (moira). Allen também coloca nas mãos do guarda-vidas um livro clássico da literatura psicanalítica em que Hamlet é equalizado a Édipo. Seja pela falha trágica que faz com que se cumpra o destino, seja por motivações inconscientes - assume Allen através de seus personagens - somos responsáveis pelo que fazemos de nossas vidas, não dá para atribuirmos a culpa do que nos acontece aos outros. Exceto, talvez, ao acaso, quando vai se cumprir o destino fatal (anankê). Só que o destino também se cumpre pelo que cada um de nós faz com os acasos que nos surgem.
Tudo isto vem embalado como que num melodrama antigo da Warner Bros para Bette Davis fazer aqueles tipos sofridos e/ou maldosos. O estranhamento provocado pelo estilo adotado talvez desconcerte aqueles fãs do diretor habituados a esperar algum humor mesmo quando ele não filma comédias. Aqui, o humor se restringe ao filho que Ginny teve em outro casamento, um garoto que não sai do cinema. Ou sai: para satisfazer impulsos piromaníacos.
Pode não ser um dos maiores filmes de Woody Allen, Justin Timberlake não foi a melhor escolha para o papel, mas não deixa de ser muito ousado ver o octogenário diretor arriscar-se num gênero inabitual, enganando quem esperar algo mais divertido pelo título que lembra parque de diversões. Na verdade, a sugestão de roda gigante que nos fica é mais a da “Roda da Fortuna” que pode levar você para o alto, ou virar sua vida para baixo. A ousadia também se estende a Kate Winslet: Ginny joga todas as fichas num relacionamento de verão enquanto a atriz se joga por inteiro na personagem com os exageros do gênero num dos grandes desempenhos de sua carreira.
ATENÇÃO: SPOILER
Embora Woody Allen sempre negue que haja elementos autobiográficos nos enredos de seus filmes, fica difícil considerar “mera coincidência” o fato de que o filme aborda a relação de um mesmo homem com uma mulher e com sua enteada, levando a mulher mais velha a atitudes extremas, desesperadas e destrutivas.
P.S.: Leia outra opinião sobre este filme na seção "Convidados": https://criticos.com.br/?p=10283
ACRESCENTADO APÓS REVER O FILME:
O filme é mesmo bem desconcertante para quem espera o mesmo de Woody Allen.
Triste destino: quando ele se repete, reclamam que filma sempre a mesma história, mesmo com variações; e quando ele ousa investindo num gênero arriscadíssimo, como o melodrama pessimista, fica todo mundo meio perdido.
Eu mesmo, que gostei muito do filme quando o vi no Festival do Rio há dois meses, ao revê-lo ontem, gostei muito mais. Admirei mais, inclusive, a construção do roteiro que fez o que Allen quis fazer: um retrato melodramático de pessoas que, como a Cecília de Rosa Púrpura do Cairo vivem fora de sua realidade, algumas como Cecília no cinema, outras num teatro de irrealidades escapistas de seus cotidianos infelizes.
Como numa peça de Tchekov (embora aqui, a referência seja o teatro americano de O'Neill ou Tennessee Williams), nada mudará para aquele núcleo Ginny-segundo marido-filho do primeiro marido: o desalento é total.
ATENÇÃO, MAIS SPOILER
O marido, apesar de uma perda séria, vai pescar; de emoções baratas e superficiais, ele odeia a volta da filha mas em 3 minutos se rende à sua volta; desespera-se com sua perda e logo em seguida pensa em ir pescar, fazer o que?.
O garoto prossegue piromaníaco e Ginny vai continuar sonhando com o que perdeu e nunca vai obter. Final pessimista como em nenhum outro filme de Allen, talvez em outros mal recebidos, como Interiores, Setembro, ou O Sonho de Cassandra. A referência bergmaniana oculta e em outra clave seria o amargo Noites de Circo.
O ponto que ficou mais fraco ainda do que na minha primeira visão foi a participação de Justin Timberlake que não consegue um tom mais adequado ao personagem (difícil, é fato), especialmente em sua última aparição. O ator parece não saber o que nem como fazer e o faz de modo excessivamente neutro, saindo de banda, o que contrasta demais com o momento overacting de Ginny e de sua intérprete genial, a Kate Winslet, ao lado do naturalismo de Jim Belushi.
Entendo que o filme cause estranheza e desagrade, mas não por seus defeitos, e sim, por sua ousadia e clima dark. Isto não é uma comédia. Isto é um melodrama pessimista. Filmado com elegância da câmera em planos-sequência em que a câmera dança em volta dos personagens em interiores de modo opressivo e claustrofóbico. E não vou repetir sobre a iluminação de Vittorio Storaro, verdadeiro co-autor do filme ao lado da atriz principal.