É como se a velha e preconceituosa piada sobre um extintor de incêndio tomado como se fosse mais uma “instalação” numa galeria de arte contemporânea fosse levada muito longe no novo filme do diretor Rubens Östlund. Ele volta a discutir ética em relações interpessoais mais íntimas, tal como em seu filme anterior, Força Maior, de 2015, trocando o que se passava numa família nuclear de pai/mãe/filhos pequenos por uma rede de pessoas envolvidas em equívocos cometidos pelo personagem central (novamente do sexo masculino), abrindo o enredo para diversas situações nas quais, de algum modo, as ideias se perdem inconclusivamente, permanecendo de modo mais provocativo e algo gratuito do que consequente.
Christian, curador de um museu de arte contemporânea, tal como o homem de Força Maior (que num rompante instintivo deixou sua família para trás ao perceber a ameaça de uma avalanche) não é um mau caráter: capaz de parar na rua quando uma mulher pede socorro devido a um sujeito que a persegue, evita dar esmola a uma mendiga, oferecendo-se, entretanto, para comprar-lhe um sanduíche e, ao recuperar, sua carteira com dinheiro dentro, distribui várias notas para essa mesma mendiga. Ele também é yuppie, vaidoso, convive com gente muitíssimo endinheirada que faz doações para o museu (doações que ele necessita para manter o museu sempre em evidência na mídia), e teme os bairros pobres de Estocolmo. Os cariocas sabem que entrar em certas favelas (quais?) por engano pode ser uma sentença de morte, e talvez por isso possam se identificar com os medos de Christian, exagerados ou não: o que sabemos nós, aqui, imaginando uma Suécia idealizada?
Furtado em seu celular, carteira e abotoaduras herdadas de um avô, ele não desapega, não aceita que “perdeu” e segue os palpites de um funcionário do museu (não por acaso um jovem de pele escura e, provavelmente, com vivências mais próximas dos ambientes mais hostis da cidade?) que lhe propõe uma atitude mais agressiva (verbalmente) em um bilhete que seria deixado nos apartamentos do prédio indicado pelo sistema de localização do celular. Ele “amacia” os termos, mas segue o plano de modo um tanto inconsequente.
As insistentes reclamações de um garoto de seus 12 anos - mas muito marrento - e certamente imigrante, sobre os problemas que o bilhete lhe causou vão deixá-lo com sentimento de maior perigo, fazendo com que seja displicente sobre um projeto marqueteiro de divulgação de uma nova exposição que dá o título do filme, The Square : um quadrado com uma proposta bem ingênua de solidariedade humana (dentro de seus limites geométricos).
A cena-clímax é a que se vê na foto do cartaz: uma performance “gorilesca” do artista Oleg (interpretado pelo ator Terry Notary) que ultrapassa qualquer limite razoável sem que Christian consiga interrompê-la. A impressão que fica é que também o cineasta não conseguiu delimitar melhor suas intenções, caindo em uma caricatura sobre instalações e performances que permite ao público menos interessado ou informado sobre arte contemporânea encontrar alguma identificação sobre o que vemos nos museus e galerias poder ser uma série de fraudes apelidadas de “arte” por uma intelectualidade esnobe e pretensiosa.
Além dos exageros, Östlund também escorrega na pretensão em outros exemplos de mão pesada sobre o assunto: uma sala cheia de montes de cascalho que volta e meia podem ser tomados como lixo comum por faxineiros; e um curador que não consegue explicar os termos crípticos de um texto de apresentação que ele mesmo havia elaborado.
Especialmente para o Brasil, num momento em que arte contemporânea e performances são satanizadas como imoralidade, pedofilia e outras perversões, o filme cai como possível pseudo-argumento para um conservadorismo tacanho. Claro que, como em tantas coisas do mundo atual, nem sempre será evidente a distinção entre arte e fraudes oportunistas, mas Östlund segue o caminho mais fácil da caricatura associada ao humor debochado. O conservadorismo em sua proposta pode ser deduzido de uma das cenas iniciais em que uma enorme estátua equestre de bronze em estilo acadêmico (“clássico”?) é retirada de modo desastrado (e danificada) do pedestal onde se encontrava, justamente para delimitar no chão o “quadrado” já mencionado, criação de uma artista argentina (sic). Ideia inútil de uma terceiro-mundista naïve com pretensão a “arte”?
À ponta solta da performance do homem-gorila num jantar formal de endinheirados soma-se a do relacionamento eventual de Christian com uma repórter americana (que também poderíamos classificar como ingênua – ou até mesmo “tosca”) que o deixa em maus lençóis: a) metaforicamente, numa entrevista na qual ele não consegue explicar bem o que quis dizer num texto de sua autoria; mas também b) concretamente, quando depois de uma transa brigam pela camisinha usada (ou seu conteúdo?). A reaparição desta repórter (Elizabeth Moss num papel pra lá de ingrato) é uma das cenas mais insatisfatórias do filme.
Numa outra entrevista com um artista, sem Christian, também há bastante deboche para com a tolerância de pessoas tão finas, elegantes e intelectualizadas: um homem, cuja esposa tenta justificar como portador da Síndrome de Tourette, da plateia, grita impropérios grosseiros - mas não ocorre a ninguém solicitar à mulher que leve seu marido do ambiente que ele perturba de modo muitíssimo inconveniente. Pelo contrário: deixemos o "pobre homem doente", propõe alguém super-politicamente-corretíssimo. Um deboche que atinge propostas de inclusão? Mas deste modo? Pobre. Tosco.
Fica a impressão de que Östlund colocou-se num lugar superior a partir do qual, mais do que observar vergonhas cotidianas de gente como ele (que já fez instalações em museus ou galerias) e como todos os bem intencionados no terreno da ética em relações próximas, faz um certo bullying com seus personagens.
Um ponto positivo é a interpretação de Claes Bange no papel principal: às vezes dá impressão de que o ator com seus constrangimentos bem transmitidos pela expressão facial tem mais a dizer do que o enredo, roteiro e direção conseguiram. A cena em que ele sofre um linchamento verbal (típico de nosso tempos) numa entrevista coletiva por conta do clipe feito por dois jovens marqueteiros, clipe ao qual ele não deu atenção por estar envolvido com os furtos que havia sofrido, assim como em outra, em que ele pretende se desculpar com o garoto marrento já mencionado antes, revelam o que um ator pode tentar fazer com um enredo que atira em tantas direções mas que se omite de modo ainda mais blasé do que o personagem e sem assumir nenhum desenvolvimento mais consequente.