Críticas


DAMA NA ÁGUA, A

De: M. NIGHT SHYAMALAN
Com: BRYCE DALLAS HOWARD, PAUL GIAMATTI, JEFFREY WRIGHT
21.09.2006
Por Jaime Biaggio
AS COISAS SÃO COMO SÃO

É assombroso que alguém na posição que M. Night Shyamalan ocupa se permita ser M. Night Shyamalan. Não é só o fato de se pretender autor e trabalhar no veio central da indústria. Isso está longe de ser inédito, afinal. Só que onde o comum é um diretor usar alguma das fôrmas disponibilizadas pelo cinema de gênero para espalhar seus interesses temáticos, com todo o cuidado para não distorcer um molde que está ali para facilitar a transcodificação por parte do público, Shyamalan faz do ruído na comunicação sua meta e seu modus operandi. Seu investimento na fantasia, no conto de fadas, na ode ao poder da imaginação, é de uma natureza diferente do que fazem um Spielberg, um Peter Jackson ou mesmo um Tim Burton (para citar um que divide com ele a fama de “subversivo”). Todos esses, de uma forma ou de outra, alimentam o público com mágica. Shyamalan faz algo mais arriscado: direciona o olhar do público para onde ele não estava olhando de início e ensina a enxergar a mágica que ali estava, insuspeita.



Esse é o ponto que A Dama na Água explora, de forma ainda mais ambiciosa que O Sexto Sentido, Corpo Fechado ou A Vila. Os dois primeiros ainda se encaixavam mais ou menos dentro de gêneros, ou pelo menos atendiam às expectativas geradas pelo molde; em A Vila, a equação era invertida, enxergava-se a fantasia, mas a meta final era a percepção de uma amarga realidade. O que A Dama na Água tem em comum com A Vila, no entanto, é o fato de investir nos mecanismos de criação de uma fantasia. Aqui isso se dá de forma direta: a personagem-título (Bryce Dallas Howard, a cega de A Vila) não se chama Story por acaso. Da mesma forma que ela tem uma meta a atingir, um caminho a percorrer, etapa por etapa, sua story, ops, história vai achando seu eixo aos poucos, por tentativa e erro. Na medida em que os personagens se envolvem com ela, Story/história, se comprometem mais com a sua trajetória, e achando as pistas certas. E com eles, nós todos. O processo de aceitação de Story, sua existência, seu inesperado surgimento na piscina do condomínio detonado de que Cleveland Heep (Paul Giamatti) é o zelador, seu drama com os terríveis cachorros de grama e seu desejo de voltar para seu mundo, e a busca do envolvimento, da cumplicidade com ela e das ferramentas para ajudá-la a cumprir sua trajetória, esse processo é dos moradores do lugar, a começar pelo próprio Heep, mas também do público.



E não há explicações fáceis para nada. As coisas são como são. O rapaz latino exercita só um lado do corpo, ficando com um braço maior que o outro, porque quer. Simples. O filho do personagem que faz palavras cruzadas (o excelente Jeffrey Wright) decifra mensagens espiritual-transcendentais em caixas de cereal do armário da cozinha porque... é assim que ele consegue vê-las, ué. É esse o jeito dele, um processo como qualquer outro. Uns usam cartas, outros búzios, ele usa sucrilhos. É assim. Às vezes nem dá certo, como o próprio filme mostra. Não é mágico. Só é uma forma de se alcançar a mágica.



Esse é um tema recorrente de A Dama na Água: aceitar as coisas como elas são, e achar no real o transcendental (é, soa como tópico de livro de auto-ajuda sobre serenidade no amor, mas esse também é um tema recorrente dele; não era O Sexto Sentido, à segunda olhada, um grande filme de amor?). E o triste fim do crítico de cinema vivido por Bob Balaban é o decreto da impossibilidade de se decifrar por completo a vida ou a arte (sim, sim, claro, o que invalida parcialmente a existência desse texto, mas tentar a gente pode, certo?).



E, se alguém achou que A Dama na Água evolui aos trancos e barrancos, sim, achou certo, é isso mesmo. É como as histórias de todos nós transcorrem aqui no mundo real. É dele que Shyamalan fala sempre, com ou sem cachorros de grama.



Afinal, como bem dizia a epígrafe de outro filme que encaixava o absurdo no cotidiano, o brilhante e infelizmente esquecido True Stories, de David Byrne, se você consegue pensar em algo, existe em algum lugar.

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