Desta vez, o diretor Guillermo del Toro reduziu a escatologia que comprometeu a boa proposta inicial de O Labirinto do Fauno (se quiser, leia minha crítica em https://criticos.com.br/?p=1127) e conseguiu sair do atoleiro em que se meteu ao tentar reciclar de modo infeliz o “terror gótico” em A Colina Escarlate (2015). Como no Labirinto, o tom é de fábula, o que permite algumas facilidades por um lado - mas traz alto risco de estereótipos por outro – na definição bem clara do pretendido. E, de fato, o cineasta deixa bem explícita sua ojeriza por preconceitos contra as mais diversas minorias: negros, gays, pessoas de profissões tidas como de "baixo estrato social" (no caso do filme, faxineiras), ainda mais se forem deficientes (e a personagem central é muda E faxineira), além da xenofobia para com os estranhos (a tal “forma” que nem é tão disforme assim: não deixa de ser humanoide, ainda que com aspectos de criaturas aquáticas)... enfim, todos esses preconceitos que voltam a se manifestar de modo assustador nos dias de hoje, para não mencionar essa preocupante “era Trump” (ainda que não só). Como época da ação, a bem escolhida da “guerra fria”, da “corrida espacial” e dos sonhos democráticos da era Kennedy inicial começando a fazer água.
Mas só de boas intenções não se faria um bom filme e Del Toro caprichou no modo de contar sua história. Efeitos especiais, como de hábito, estão lá, mas sem o abuso que ajudou a enterrar A Colina Escarlate. Aqui, os truques visuais estão a serviço do enredo e das necessidades que o roteiro exige. Contando com um elenco afinadíssimo, consegue que aspectos mais unidimensionais dos personagens fabulares ganhem mais profundidade, o que é verdade até mesmo para o fantástico desempenho de Doug Jones, mais uma vez sob máscara e próteses (como no 'Fauno' do Labirinto), com expressão corporal admirável - ainda que sendo apenas pouco mais humanoide do que o “Monstro da Lagoa Negra” do filme homônimo de 1954, óbvia inspiração para a “forma” anfíbia.
Sally Hawkins, a quem a Academia está devendo o Oscar de 2014 por seu trabalho de coadjuvante em Blue Jasmine acabou sendo (como previmos na época do lançamento do filme no Festival do Rio 2017) um nome forte no páreo - se os preconceitos contra cenas de nudismo de corpos fora dos padrões y otras cositas más não pesarem no moralismo americano. Quase sem emitir uma palavra o filme todo, ela se mostra excepcional num papel que poderia resvalar facilmente no ridículo. Richard Jenkins também teve chances de voltar à corrida do Oscar fazendo um gay enrustido dos anos 1960, embora haja nomes tão ou mais fortes nas indicações desta categoria.
Nos papéis secundários, Octavia Spencer (a "amiga da 'mocinha'" que traduz sua linguagem gestual) e Michael Stuhlbarg (o inimigo que pode ser amigo) fazem bem o que se espera deles, sendo que Octavia já levou seu Oscar (os votantes da Academia adoraram indicá-la de novo - com certo exagero), mas Stuhlbarg ainda merece melhores papeis desde Um Homem Sério dos Coen. Ele também mereceria ser lembrado, mas por outro filme em cartaz, Me chame pelo seu nome. O papel mais ingrato de vilão-vilão-de-verdade-mau-muito-mau ficou com Michael Shannon que precisa cuidar para não ficar preso à essa máscara de homem mau. Mas numa fábula a coisa funciona assim mesmo para vilões (lembrar o militar fascista do Fauno)
A fotografia climática do dinamarquês Dan Laustsen, que já havia trabalhado duas vezes para o diretor é outro trunfo, além do revival de canções românticas adequadas à trama como “You’ll never know” (de 1943) - e outras mais, com as bandas de Glenn Miller e de Benny Goodman. O link para essas músicas, que nem eram de 1962 quando a história se passa, é o gosto do personagem de Jenkins por cantoras e estrelas já fora de sucesso naquele ano. Já a trilha de Alexandre Desplat não brilha tanto assim, embora mais uma vez a pegada de fábula torne sua canção-tema bonitinha bastante funcional.
No mais, é admirar o lance da criatura aquática não saber falar e a personagem de Sally Hawkins ser muda: como ela explicita “ele não sabe que sou 'incompleta’ ”. A química corporal entre essa borralheira silenciosa, nem tão bela, e sua "fera" aquática vai se destacar numa cena-surpresa antológica.