Críticas


TRAMA FANTASMA

De: PAUL THOMAS ANDERSON
Com: DANIEL DAY LEWIS, VICKY KRIEPS, LESLEY MANVILLE
22.02.2018
Por Luiz Fernando Gallego
Uma versão pervertida de Pigmalião (ou My Fair Lady) de B. Shaw com toques de Hitchcock, Truffaut ou Buñuel em roupagem viscontiana.

Enquanto Bernard Shaw fez sua paródia do mito de Pigmalião na peça homônima que mais tarde deu origem ao musical My Fair Lady, Paul Thomas Anderson parece ter elaborado uma versão perversa da história da florista transformada em “lady” por um misógino professor de fonética. Aqui, a vendedora de flores pelas ruas aparece como uma garçonete que é levada a viver na casa-atelier de um grande costureiro obsessivo dos anos 1950: como musa, modelo, amante e... capacho. A ex-florista de Shaw rejeitava o papel de capacho e abandonava seu (re)criador, embora no musical ela voltasse para ele. A ex-garçonete protesta quando se sente desconsiderada (e como é desconsiderada!), não vai nem volta, mas pode tentar reciclar a relação sado-masoquista em outros termos. Afinal, como já foi dito acima, trata-se de uma situação perversa e pervertida. Tudo isso com muita sutileza e elegância.

Falando em perversões cinematográficas, como não lembrar de Don Luís Buñuel? Talvez como no jogo entre Tristana e seu tutor? E lembrando de Tristana, como não lembrar Catherine Deneuve num dos filmes mais “hitchcockianos” de Truffaut que mostrava um Belmondo submisso àquela “Sereia do Mississipi” vivida também por Deneuve?

Mas em termos de Hitchcock, a lembrança mais fácil é a da segunda mulher do viúvo de Rebecca, trocando-se a criada perseguidora por uma irmã do costureiro que começou sua carreira desenhando o vestido de noiva para o segundo casamento da mãe. Mãe fantasmática pode ser mais difícil de vencer do que a lembrança de uma Rebecca - mulher inesquecível?

Talvez nem P. T. Anderson tivesse todas essas referências em mente quando escreveu o roteiro de Trama Fantasma, mas o cinéfilo aplicado certamente poderá se deliciar com tamanha intertextualidade: Rebecca vem sendo citada como a maior de todas; eu aposto mais em Pigmalião (ou My Fair Lady), mas formalmente a mais relevante talvez seja a mescla de um toque de Visconti ...numa perversão buñueliana. Como nos filmes do "conde vermelho" o vestuário é fundamental, ainda mais se tratando de haute couture da década de 1950... Raras vezes a perversão foi tão atraente e tão bonita. O rigor formal de P. T. Anderson atinge proporções tão obsessivas quanto as de seu personagem, o costureiro/estilista que insere "mensagens" no forro de suas criações. Talvez as referências nem tão ocultas que percebemos sejam as "mensagens" que Anderson envia à plateia. Ou será a vestimenta no todo, a aparência visível que importa mais?

Nos detalhes da produção há espaço suficiente para apreciarmos Vicky Krieps no papel da musa eventualmente enxovalhada pela misoginia do costureiro interpretado por Daniel Day Lewis. A atriz não faz feio nenhum no embate com esse monstro de interpretação que é o ator. O tipo físico de Krieps não é valorizado apenas como modelo para o costureiro: a câmera também parece enamorada de seu pescoço longo e do sorriso que quase mostra a gengiva superior, lembrando um pouco Julianne Moore (que foi atriz em dois filmes de Anderson). A fotografia do próprio diretor destaca até as variações de tons de sua pele. Pena ela ter sido esquecida na temporada de prêmios que vem preferindo Lesley Manville como a irmã-administradora da Maison Woodcock (nome que visa sugerir Hitchccock? ...ou algo mais?). Manville tem uma personagem mais "direta", sem tantos subtextos e faz o que tem que fazer à perfeição; não é que ela não mereça ser indicada aos prêmios, mas a sutileza do desempenho de Vicky Krieps também mereceria ser mais lembrada.

Na trilha sonora do habitual colaborador dos filme de P. T., Jonny Greenwood (Radiohead) mesclam-se trechos de várias músicas clássicas muito bem utilizadas, além de um registro antológico de My Foolish Heart por Oscar Peterson logo no início.

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