Críticas


O TERCEIRO ASSASSINATO

De: HIROKAZU KORE-EDA
Com: MASAHARU FUKUYAMA, KÔJI YAKUSHO, SUZU HIROSE
20.04.2018
Por Luiz Fernando Gallego
Kore-Eda aborda o gênero criminal para falar de relações familiares e rediscutir a verdade inapreensível como no clássico "Rashomon"

Hirokazu Kore-Eda é um dos nomes mais importantes do cinema japonês e mundial, frequentemente associado a enredos familiares (Still Walking, 2008; Pais e Filhos, 2013) com destaque para abordagens sobre a infância (Ninguém pode saber, 2004; O que eu mais desejo, 2011). À primeira vista podemos estranhar ver seu nome num filme de registro policial/criminal, mais especificamente no subgênero “advogado de defesa investigativo”. Entretanto, o roteiro do próprio diretor para O Terceiro Assassinato não abandona o foco familiar, desta vez mais detidamente no relacionamento entre pais e filhas, ainda que não só.

Um ex-presidiário, Takashi Misumi, depois de cumprir trinta anos de prisão por um duplo assassinato, encontra-se novamente na cadeia, réu confesso de um crime envolvendo homicídio e roubo, com agravante de ter incendiado o cadáver do ex-patrão que o havia despedido recentemente. Com o alto risco de condenação à morte, Settsu, seu primeiro defensor, recorre a outro advogado, Shigemori, para assumir a defesa do caso. Não por acaso, Shigemori é filho do juiz que há trinta e poucos anos poupou Misumi da pena de morte.

Se Misumi teve pouco relacionamento com sua única filha, o advogado Shigemori enfrenta problemas de comportamento de sua filha adolescente. E o homem assassinado deixou uma filha, portadora de um problema de nascença em uma das pernas, o que a faz mancar. Só que ela tem outra versão para sua deficiência física. E esta é apenas uma das dúvidas que a equipe de defesa vai enfrentar, pois Misumi conta diferentes versões para o crime: a motivação muda, os detalhes parecem confusos, suas repostas são pouco precisas e a coisa toda vai ficando menos - ou mais - convincente à medida que os interrogatórios vão se sucedendo e novos fatos vão surgindo.

Não só pela origem japonesa do filme, a lembrança do clássico Rashomon, de Akira Kurosawa, 1950, se impõe com facilidade para o cinéfilo. No conto de Akutagawa que deu origem ao antigo filme, três depoimentos, de três pessoas diferentes, colocam em questão a verdade factual sobre um assassinato, com uma peculiaridade: cada um dos depoentes assume o crime como de sua autoria. Até o morto, encarnado numa médium, diz que foi ele mesmo que se matou...

No roteiro de Kore-Eda basta um personagem, o réu, com versões diferentes das circunstâncias do crime e relatos vagos, omissos e elípticos para deixar em dúvida sobre o que/como/porquê/para que o assassinato em pauta teria acontecido. Além do que, como diz em algum momento o advogado Shigemori, para a defesa, o que importa é a construção de um enredo que atenue a pena de morte para prisão perpétua, independente de como terão se passado os fatos reais. Tal pragmatismo vai sofrer abalos com o desenrolar dos detalhes que surgirão envolvendo mais gente em torno do crime.

Como adendo de curiosidade para o público ocidental, certos aspectos da justiça japonesa podem surpreender. Um exemplo apenas: quando, num tribunal ocidental, a promotoria perguntaria à filha do homem assassinado como ela acha que o réu deveria ser penalizado – e mais ainda, o que ela gostaria de dizer para o falecido pai? Supondo-se que a ficcionalização do roteiro não afronte a verossimilhança de como transcorre um processo e julgamento no Japão.

Talvez alguns espectadores se ressintam de um excesso de questões que o filme aborda, por vezes de maneira tangencial (como a relação do advogado com sua filha aprontadora) e sem permitir conclusões definitivas, mas esta parece ter sido a intenção de Kore-Eda que nos brinda com mais um filme sobre relacionamentos familiares, desta vez em tom mais soturno e sob a aparência de filme de gênero criminal, mas com mais ambições do que sua sinopse faria suspeitar.

Além da questão sobre a verdade absoluta poder ser inapreensível, Kore-Eda também presta uma outra homenagem ao Kurosawa de Céu e Inferno (1963) na tomada dos reflexos de dois rostos se superpondo no material transparente de uma mesa de conversa entre um prisioneiro e outra pessoa, do lado oposto. Em vez de superpor os rostos frontalmente como fez Kurosawa originalmente - e Win Wenders faria em Paris, Texas - em O Terceiro Assassinato a superposição é dos perfis de Misumi e Shigemori, brilhantemente interpretados por Kôji Yakusho (que já trabalhou várias vezes fora do Japão, como em Babel, 2006) e Masaharu Fukuyama (que já havia trabalhado com Kore-Eda em Pais e Filhos).





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Outros comentários
    4762
  • Douglas Pizza
    20.04.2018 às 10:41

    Show meu amigo... Excelente, como sempre, resenha. Vou ver hoje este filme. Gosto muito do Kore-eda.