Críticas


VOCÊ NUNCA ESTEVE REALMENTE AQUI

De: LYNNE RAMSAY
Com: JOAQUIN PHOENIX, JUDITH ROBERTS, EKATERINA SAMSONOV
14.08.2018
Por Luiz Fernando Gallego
A mente dilacerada do personagem é álibi para uma narrativa fragmentada estilosa e fetichista

Lynne Ramsay está para Martin Scorsese assim como Você Nunca esteve realmente aqui está para Taxi Driver, ou seja, a relação é a da distância que separa, de um lado, os maneirismos estilosos desta diretora, e, de outro, o uso de diferentes narrativas para adequá-las a cada tema - ou seja, a forma de acordo como o conteúdo em diferentes filmes com narrativas condizentes por parte de Scorsese. Aqui, o álibi de Ramsay é a mente desagregada do personagem central, ‘Joe’, como que justificando uma narrativa mega-fragmentada que acaba por se comprazer em si mesma, mais do que servir ao seu enredo.

Comparado elogiosamente à obra que consagrou Scorsese no Festival de Cannes de 1976, o mais recente filme da diretora escocesa de Precisamos Falar Sobre Kevin também recebeu prêmios em Cannes no ano passado, o que mostra como jurados também podem se deixar levar por uma construção/edição muito hábil de planos curtos com ênfase em elipses e no extracampo (muito chique), acompanhada de som e fúria significando muito pouco numa trama que envolve pedofilia em esferas elevadas da sociedade sendo desbaratada por um assassino de aluguel com a mente embaralhada entre o que é real no presente, seu passado e sua imaginação. O único porto seguro de 'Joe' talvez esteja na relação com a mãe idosa. Acostumado a “resolver” suas tarefas com precisão obsessiva e violenta, ao mexer num vespeiro de cobras poderosas, ele vai enfrentar a situação de ser caça em vez de caçador.

Excelente ator, Joaquin Phoenix se destaca em mais um desempenho notável, dando alguma liga a um filme tão pulverizado quanto a psicologia despedaçada do personagem - e que acaba por se diluir numa encenação preciosista que fica mais como um fetiche ao abordar o mais repugnante dos fetiches: a pedofilia como praga disseminada em variados extratos sociais.

Ao lado de trilha musical minimalista enfatizada na cena “poética” do lago, temos algumas baladas pop enxertadas em segundo plano sonoro, sugerindo alguma referência a cacoetes de outro criador de climas onde o insólito vale por ser insólito, o ainda mais superestimado David Lynch. Mas Lynne Ramsay, pela sensação que está causando, talvez caminhe para chegar a esse patamar de adoração deslumbrada. Por exemplo: quando coloca um agressor de Joe agonizando de mãos dadas com o próprio Joe, cantando juntos uma balada estilo anos 50/60 - o que seria até cômico (feitio deboche à Tarantino) se não fosse patético. Ah! Que original! Ah, que estranho! Ah, quanta bobagem!

Um ponto favorável no uso/abuso de elipses está no fato de poupar o espectador das cenas em que Joe “martela” a cabeça de seus desafetos, mostrando-os apenas após o serviço ter sido feito. Isto poderia até ser um avanço da diretora em relação ao excesso de vermelhos e sangue em seu filme anterior, o ainda mais maneirista Precisamos falar sobre Kevin (minha crítica em https://criticos.com.br/?p=2295&cat=1 ).

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Outros comentários
    4810
  • Olga Costa
    16.08.2018 às 06:18

    Sou super fã do Joaquin Phoenix, e fiquei super animada com a possibilidade de assistir a mais uma de suas excelentes performances. Mas sinto que essa diretora, através de seu gosto exacerbado por banhos de sangue, está fazendo seu nome muito em cima de filmes/ diretores consagrados, o que dilui sua credibilidade como artista criativa. Concordo com o Gallego quando ele aponta para o incensamento iminente da diretora, o que me desanima bastante. Assisti "Kevin" meio sem saber do que se tratava, e quase fugi na metade, porque me pareceu previsível até certo ponto (mas não tanto). Deveria ter fugido. Então, Phoenix, mil desculpas: não estou preparada para mais um banho de sangue "cult". Parabéns, Gallego; como sempre, você botou o dedo na ferida (sic).
  • 4811
  • Concy
    16.08.2018 às 16:13

    Caro Gallego, muito boa sua crítica. Como não conheço bulhufas da técnica de cinema, mas gosto de boas histórias, mesmo que as cenas pareçam não ter lógica. Não mostrar cenas de marteladas, talvez deixe para o espectador pensar muito mais sobre um tema que precisamos muito conversar. Nada de distrações desnecessárias. Embora lembre Taxi Driver, os assuntos principais continuam sendo a loucura humana, desencadeada por sociedades cada vez mais desumanas e suas respectivas anomalias. Qual a diferença entre um padreco é um político e um pai pedófilos? Phoenix é fabuloso. E a cena do rio é linda. Um pouco de poesia nessa podridão