Lynne Ramsay está para Martin Scorsese assim como Você Nunca esteve realmente aqui está para Taxi Driver, ou seja, a relação é a da distância que separa, de um lado, os maneirismos estilosos desta diretora, e, de outro, o uso de diferentes narrativas para adequá-las a cada tema - ou seja, a forma de acordo como o conteúdo em diferentes filmes com narrativas condizentes por parte de Scorsese. Aqui, o álibi de Ramsay é a mente desagregada do personagem central, ‘Joe’, como que justificando uma narrativa mega-fragmentada que acaba por se comprazer em si mesma, mais do que servir ao seu enredo.
Comparado elogiosamente à obra que consagrou Scorsese no Festival de Cannes de 1976, o mais recente filme da diretora escocesa de Precisamos Falar Sobre Kevin também recebeu prêmios em Cannes no ano passado, o que mostra como jurados também podem se deixar levar por uma construção/edição muito hábil de planos curtos com ênfase em elipses e no extracampo (muito chique), acompanhada de som e fúria significando muito pouco numa trama que envolve pedofilia em esferas elevadas da sociedade sendo desbaratada por um assassino de aluguel com a mente embaralhada entre o que é real no presente, seu passado e sua imaginação. O único porto seguro de 'Joe' talvez esteja na relação com a mãe idosa. Acostumado a “resolver” suas tarefas com precisão obsessiva e violenta, ao mexer num vespeiro de cobras poderosas, ele vai enfrentar a situação de ser caça em vez de caçador.
Excelente ator, Joaquin Phoenix se destaca em mais um desempenho notável, dando alguma liga a um filme tão pulverizado quanto a psicologia despedaçada do personagem - e que acaba por se diluir numa encenação preciosista que fica mais como um fetiche ao abordar o mais repugnante dos fetiches: a pedofilia como praga disseminada em variados extratos sociais.
Ao lado de trilha musical minimalista enfatizada na cena “poética” do lago, temos algumas baladas pop enxertadas em segundo plano sonoro, sugerindo alguma referência a cacoetes de outro criador de climas onde o insólito vale por ser insólito, o ainda mais superestimado David Lynch. Mas Lynne Ramsay, pela sensação que está causando, talvez caminhe para chegar a esse patamar de adoração deslumbrada. Por exemplo: quando coloca um agressor de Joe agonizando de mãos dadas com o próprio Joe, cantando juntos uma balada estilo anos 50/60 - o que seria até cômico (feitio deboche à Tarantino) se não fosse patético. Ah! Que original! Ah, que estranho! Ah, quanta bobagem!
Um ponto favorável no uso/abuso de elipses está no fato de poupar o espectador das cenas em que Joe “martela” a cabeça de seus desafetos, mostrando-os apenas após o serviço ter sido feito. Isto poderia até ser um avanço da diretora em relação ao excesso de vermelhos e sangue em seu filme anterior, o ainda mais maneirista Precisamos falar sobre Kevin (minha crítica em https://criticos.com.br/?p=2295&cat=1 ).