O colonialismo francês é menos retratado no cinema do que o antigo e enorme império colonial inglês. Mas a guerra pela independência argelina ficou algo familiar - pelo menos para os cinéfilos - a partir de filmes, hoje clássicos, como O Pequeno Soldado, de Godard, Muriel, de Alain Resnais, e principalmente A Batalha de Argel, de Gillo Pontecorvo. Vale lembrar que até no romântico Os Guarda-chuvas do Amor, a separação do casal Catherine Deneuve - Nino Castelnuovo se dava porque ele era convocado para esta guerra colonialista.
Um dos melhores filmes exibidos no Festival do Rio de 2005, Caché, de Michael Haneke, tinha, como principal ponto de partida para sua trama, passada na atualidade, um episódio pouco conhecido, dentro - e mais ainda fora - da França em sua história recente: em 1961, uma manifestação pacífica de argelinos na dita capital das luzes transformou-se numa chacina bárbara com um número até hoje desconhecido de mortos. Talvez em torno de 200. Muitos foram jogados no romântico Rio Sena, em plena Paris.
A guerra pela independência da Argélia havia chegado à capital e às suas favelas horizontais povoadas de árabes. Um clima de medo grassava entre esta população desfavorecida socialmente e também entre os policiais que tratavam os argelinos de forma brutal, sem reconhecer seus direitos civis, prendendo-os por nada, humilhando-os, torturando e matando. Não deixa de ser lamentavelmente chocante para os brasileiros que idealizam outras nações, supostamente mais “civilizadas” em termos de direitos humanos, encontrar procedimentos corruptos e violentos de policiais parisienses em uma época idealizada no imaginário pela nostalgia dos anos 1950/60, muito bem recriada no filme A Batalha de Paris - que também exibe o que faziam membros da FLN (Frente de Libertação Nacional) argelina em atos terroristas, tendo assassinado, aleatoriamente, mais de vinte policiais desde o início até setembro de 1961.
O alto comando da FLN, desaprovando esses procedimentos, organizou uma marcha pacífica para 17 de outubro, que redundou no massacre autorizado e sob a proteção do prefeito Maurice Papon - posteriormente identificado como cúmplice de crimes contra a humanidade sob a ocupação alemã, quando participou da entreguista "República de Vichy". Ele e seu ajudante de ordens são os únicos personagens “autênticos” do filme, que não é um documentário nem um docudrama, já que não apresenta nenhum filme ou foto da época - mas sim, uma bem cuidada recriação ficcional dos fatos, orientada pelo roteirista e historiador Patrick Rotman (autor de uma biografia de Yves Montand e que já participou de outro filme sobre a Guerra da Argélia, dirigido por Bertrand Tavernier).
Segundo o próprio realizador, Alain Tasma, as influências explícitas para seu filme são o já mencionado A Batalha de Argel e Domingo Sangrento, de Paul Greengrass (que trata de episódio similar ao de Paris, quando o exército britânico, em 1972, massacrou irlandeses em marcha pacífica, levando a uma maior adesão ao IRA).
A Batalha de Paris (Nuit Noir, 17 octobre 1961) é um filme produzido originalmente para a TV que cai muito bem nas telas grandes das salas de cinema. Curiosamente, além da TV francesa, só foi exibido no Festival de Toronto e recebeu um prêmio em um Festival na Polônia, que já premiou filmes como os nossos Central do Brasil e Cidade de Deus ao lado de outros filmes dignos. Seu diretor foi assistente de vários cineastas mais famosos como Truffaut (em A Mulher do Lado) e Godard (Passion).
Num momento em que a questão da xenofobia contra os imigrantes e descendentes árabes se reatualiza na França, este filme ganha especial importância como ponto de reflexão, lembrando-nos que a distância espacial que faz cessar a luta entre animais inferiores da mesma espécie, nos seres humanos tem a distância física - e emocional - como fator favorecedor da violência e destrutividade: a imagem do inimigo é distorcida além do reconhecível. Habilmente, o filme mostra o lado “humano”, bom
A violência a serviço de um tipo de impulso de autopreservação, determinada predominantemente por conteúdos psicológicos, recebendo o incremento de fantasias de medo e ameaças, alimenta o perigo vivenciado advindo de inimigos estereotipados, configurando um círculo vicioso que, de modo crescente, acaba encontrando oportunidades realistas para transformar inimigos imaginários em adversários reais que também lutam por sua sobrevivência, contaminando ideologias maniqueístas pessoais e coletivas. A questão da possibilidade de negar a identidade e outrem (ver a si mesmo como humano e o outro como humanóide) leva à banalização da questão vida ou morte alheia. Ou seja, um humano pode ter uma visão desumanizada de outro humano e, conseqüentemente, tratá-lo de modo desumano – ou “demasiadamente humano”. Com muitos exemplos e detalhes, tudo isto pode ser encontrado nesta triste "noite negra" da "batalha de Paris".
# A BATALHA DE PARIS (NUIT NOIR, 17 OCTOBRE 1961)
França, 2005
Direção: ALAIN TASMA
Elenco: JEAN-MICHEL PORTAL, VAHINA GIOCANTE, JALIL NACIRI, JEAN-MICHEL FÊTE, PHILIPPE BAS
Duração: 106 minutos