Críticas


FESTIVAL DO RIO 2006: INFERNO

De: DANIS TANOVIC
Com: EMANUELLE BÉART, KARIN VIARD, MARIE GILLAIN
01.10.2006
Por Luiz Fernando Gallego
O INFERNO É AQUI

O falecido cineasta polonês Krzysztof Kieslowski e seu parceiro habitual, Krzysztof Piesiewicz, gostavam de desenvolver blocos de filmes com um eixo comum: Não Amarás era parte do Décalogo, uma série desenvolvida a partir dos dez mandamentos, cada um servindo de mote para uma história surpreendente em relação ao que se imaginaria em uma "leitura" mais linear ou óbvia dos dísticos religiosos. Da mesma forma, os ideais da Revolução Francesa representados nas cores Azul-Branco-Vermelho mereceram uma abordagem inusitada, mesclando dramas individuais com temas coletivos como o da União Européia.



Ao morrer muito precocemente, Kieslowski havia anunciado que talvez não fizesse mais filmes, mas uma nova trilogia, agora sobre os três espaços da Divina Comédia, vem sendo espaçadamente levada às telas por diferentes diretores a partir de idéias, argumentos e roteiros da dupla de poloneses. Paraíso foi dirigido por Tom Tykwer em 2002; um suposto “Purgatório” ainda é uma incógnita. Este Inferno já foi apresentado na mostra paulista de 2005 e chega ao Festival do Rio um anos depois, em poucas sessões e ainda com legendas eletrônicas. Será uma pena se este filme não tiver um distribuição regular, embora suas chances de interessar a um público mais amplo pareçam reduzidas. Afinal, o que se poderia esperar de um filme que faça jus a tal título?



Para o círculo de fãs acostumados aos filmes e roteiros de Kieslowski, desta vez a abordagem inicial talvez soe menos original e criativa do que em oportunidades anteriores, embora uma referência mitológica, já perto do desfecho (e que aqui não será mencionada em consideração aos que conseguirem assistir o filme) vá trazer uma certa “virada” no que ia parecendo uma aproximação mais óbvia do espaço de danação eterna da religião católica - cujo inferno, em uma visão teológica menos popular, não é um lugar onde diabos espetam almas penadas em chamas eternas, mas sim a privação do amor divino e da comunhão com os bem-aventurados, ou seja: solidão absoluta, ainda que em companhia de outros igualmente privados da graça, além de desamparo e desesperança eternas.



Para ateus e intelectuais do século XX, o inferno ganhou a idéia sartreana da conhecida formulação “o Inferno são os outros” – frase habitualmente mal-entendida como se tivesse uma conotação negativa em relação à vida em comum, o que irritava Sartre. Para ele, sua frase dizia que o inferno seria nosso aprisionamento à imagem cristalizada que os outros fazem de nós, o que retiraria a liberdade de transformação do ser. Embora o pensamento católico pareça ter um pano de fundo mais influente na obra de Kieslowski, não se pode deixar de pensar, a partir da história que vai se revelar neste Inferno, em uma forte coincidência com a impossibilidade de mudança dos personagens mortos de Entre Quatro Paredes (Huis-Clos), versão teatral que Sartre deu a essas idéias.



Há algumas questões que este filme pode suscitar, a menor sendo uma certa impressão de que o diretor da vez, o bósnio Danis Tanovic, premiadíssimo com o quase beckettiano Terra de Ninguém, foi muito reverente com o material que teve para transformar em imagens, tal como o alemão Tykwer quando abandonou o molto presto de Corra, Lola, Corra ao filmar o Paraíso em ritmo andante ou quase adagio. No início deste filme também há um excesso de óbvios (mesmo que belamente fotografados) tons de vermelho, que não é mais o da Fraternidade, último filme que Kieslowski realizou. Duas das personagens femininas centrais se debatem em vidas infernais de frustrações amorosas simétricas, uma como esposa traída, outra como amante de homem casado, em desespero; uma terceira aparece em conformado tédio, cuidando de uma mãe paralítica e muda, numa vidinha sem alento. Algumas cenas, como a de um casal de noivos um tanto bizarros sendo fotografados, ficam como corpos estranhos insólitos no meio do filme, talvez um resíduo do clima absurdo-irônico do premiado filme anterior de Tanovic.



Mas a excelência dos desempenhos da mais conhecida Emanuelle Béart, ao lado de Karin Viard (O Corte, de Costa-Gavras) e Marie Gillian (Afinidades Eletivas, dos Irmãos Taviani) consegue manter vivo o interesse na parte inicial do filme, até que seja explicitada a “tese” que o roteirista Piesiewicz quis demonstrar através da referência mitológica ventilada acima - e o filme receba um novo alento mais próximo do que se espera de uma idéia de Kieslowski e de seu colaborador em tantos outros filmes. Se Paraíso foi subvalorizado, ainda que com alguns prêmios internacionais, é provável que este Inferno esteja sendo ainda mais questionado, mas merece ser conhecido e pode mesmo ser considerado com apreço: emociona.





# INFERNO (L´ENFER)

França/Itália/Bélgica/Japão, 2005

Direção:
DANIS TANOVIC

Elenco: EMANUELLE BÉART, KARIN VIARD, MARIE GILLAIN, GUILLAUME CANET, JACQUES PERRIN, CAROLE BOUQUET

Duração: 98 minutos

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