Pode-se pensar em dois modos de olhar Menina Má.com: assisti-lo como um thriller feito para manter o espectador grudado na cadeira por conta de arquitetada situação de suspense; ou pretender encontrar uma abordagem dramática e séria sobre questões polêmicas como pedofilia, encontros pela internet, impunidade legal e justiça pelas próprias mãos. Esses olhares não necessariamente seriam excludentes e o filme pode estar despertando alguma sensação por aparentar habilidade (manipulação?) em captar nosso olhar como que unindo duas vertentes que nem sempre se encontram numa mesma obra: a do divertimento e a do filme de idéias.
Na primeira situação teríamos um filme formalmente esperto em sustentar a tensão psicológica (e física) durante o embate entre uma mocinha de 14 anos e um fotógrafo na faixa dos trinta. Eles se “conheceram” pela internet e depois de algum tempo marcaram encontro num lugar público. Ela se insinua bastante e ele demonstra alguma pequena (e hipócrita?) resistência em levá-la para sua casa devido à idade dela (Hard Candy, o título original, se refere a uma gíria da internet para garotas menores de idade). Chegando lá, a paráfrase - tornada ostensivamente óbvia - da inversão de papéis entre “Chapeuzinho Vermelho” e “Lobo Mau” assume conotações sádicas na conduta da garota, totalmente inesperada para o personagem masculino, mas nem tanto para o espectador.
O desempenho de Ellen Page, desde o início, não deixa muitas dúvidas sobre a primeira pretensa reviravolta na situação-clichê de homens adultos que seduzem jovenzinhas pela internet com propósitos os mais abjetos. A atriz demonstra competência técnica e entrega ao papel, mas sua interpretação tem um tanto de overacting. Seria mesmo difícil de escapar desta armadilha, já que a personagem vai se transformando em uma espécie de versão juvenil de Kathy Bates em Louca Obsessão, filme que também pretendia dois níveis de leitura, um de divertimento (?) e outro, como se fosse uma meta-leitura da relação entre a fã e o artista aprisionado pelas exigências e expectativas de seu público. Louca Obsessão já era uma degenerescência feita para os anos 1990 de O Colecionador, filmado em 1965 por William Wyler a partir do romance de John Fowles, lançado dois anos antes. No último grande filme de Wyler já havia um certo destaque à situação de thriller a partir do aprisionamento da moça pelo “colecionador”, deixando menos evidentes as alusões do livro à incomunicabilidade entre pessoas de estados sócio-culturais afastados. O que nem sempre é mau desde que não se não se pretenda uma “leitura” induzida ao público. Almodóvar iria retomar a mesma situação de forma um tanto debochada em Ata-me!, já sob o signo da “Síndrome de Estocolmo” (ou do fenômeno da identificação do agredido com o seu agressor, descrito com este nome pela psicanálise muito antes do rótulo “de Estocolmo”).
Para ser visto como divertimento (?) Menina Má.com exige uma adesão ou submissão do espectador a uma série de situações violentas de verdadeira tortura implacável - com ameaças de castração, enforcamento, asfixia, choques elétricos em banheira, quase um repertório completo dos desmandos das ditaduras de triste memória. Nem vale a pena discutir uma certa inverossimilhança do personagem masculino conseguir se safar das amarras em que é colocado por tantas vezes e por outras tantas acabar dominado pela mocinha. Quem não desfrutar de filmes com este cardápio de maldades talvez queira sair no meio da projeção.
Nesses recursos sádicos utilizados pela mocinha para dominar e punir o homem reside uma grave fragilidade do olhar que procure aceitar o filme como “sério”: se a pedofilia é uma das mais graves transgressões aos ideais éticos de nossa cultura, o que fazer com os pedófilos (e por extensão com os demais transgressores que se constituam em ameaça para a sociedade)? Esta questão permanece como um mal-estar na civilização e frequentemente sua “solução” descamba para a defesa rápida da pena de morte, quando não dos métodos hediondos de tortura para obter confissões ou simplesmente para um revide taliônico. Neste filme, o personagem masculino, além de se apresentar com toda a carga de dissimulação que teriam os pedófilos sedutores (“lobos em pele de cordeiro”), pode acabar despertando mais simpatia pelos tormentos que sofre, largamente expostos na tela grande. E o desempenho competente e mais sutil de Patrick Wilson colabora neste sentido de quase atenuar seus supostos crimes - não vistos - enquanto as barbaridades da menina má vão sendo exibidas num paroxismo desagradável.
A direção de arte, fotografia, habilidade com a câmera e até mesmo uma apresentação dos créditos estilosa e “clean” embalam para presente esse manancial de desmandos, repetindo, no final das contas, a “mensagem” perversa do supervalorizado e amoral Dogville, de Lars Von Trier, quando a personagem “Grace” resolve deixar seu papel masoquista de falsa vítima perseguida (?) pelo papai-mafioso e se transforma em “justiceira” com armas do próprio papaizão, resguardando-se o direito de eliminar os mesquinhos habitantes do vilarejo. Este “direito” avocado por alguns de eliminar outros, “piores”, já deu margem a toda uma série de monstruosidades das quais os genocídios étnicos dos diversos nazi-fascismos são apenas manifestações mais recentes na história da humanidade. As platéias de Dogville freqüentemente aplaudiam a “ética” de Grace fazer justiça pelas próprias mãos. Não é desse jeito que se vai conseguir discutir melhor a grave questão da pedofilia e suas vítimas. Quando o cinema se pretende sério para discutir superficialmente temas graves como - em outra clave, a eutanásia, tal como foi colocada no manipulador dramalhão premiado de Clint Eastwood, Menina de Ouro - ou como neste mal-disfarçado exercício sádico de Menina Má.com, o desserviço que presta às platéias, no sentido de alimentar preconceitos, transforma-se em nova e importante polêmica quanto à disseminação de reducionismos de raciocínio, coisa que merece maior atenção para não se estimular o imaginário da banalidade do mal que com o mal se curaria. Mas não cura.
# MENINA MÁ.COM (HARD CANDY)
EUA, 2005
Direção: DAVID SLADE
Roteiro: BRIAN NELSON
Fotografia: JO WILLEMS
Montagem: ART JONES
Música: HARRY ESCOTT, MOLLY NYMAN
Elenco: ELLEN PAGE, PATRICK WILSON, SANDRA OH
Duração: 103 minutos
Site oficial: clique aqui