Críticas


O BEIJO NO ASFALTO

De: MURILO BENÍCIO
Com: LÁZARO RAMOS, DÉBORA FALABELLA, STÊNIO GARCIA, OTÁVIO MÜLLER, AMISR HADDAD, FERNANDA MONTENEGRO.
06.12.2018
Por Luiz Fernando Gallego
Fotografia admirável de Walter Carvalho, tentativa curiosa de encenação em dois planos, mas elenco pouco afeito às exigências do texto.

Em sua estreia como diretor, Murilo Benício enfrenta nada mais nada mesmo do que uma das mais instigantes peças de Nelson Rodrigues, O Beijo no Asfalto, de 1961, já levada às telas duas vezes, em 1965 por Flavio Tambellini (com o título O Beijo) e em 1981 por Bruno Barreto.

Ele optou por um dispositivo não necessariamente original, mas que retira sua adaptação, de antemão, do risco de não passar de "mais uma" refilmagem: o texto integral surge numa espécie de leitura/ensaio e também encenado em cenários de estúdio, muitas vezes revelando o artificialismo de uma filmagem, mas também podendo mergulhar na ficção quando deixa determinados trechos fluírem sem tanta alternância com a leitura comentada em volta de uma mesa.

Claro que essa escolha pode ser problematizada de várias formas: seria a melhor maneira de encenar a passionalidade de um texto de Nelson? Qual o efeito procurado? O distanciamento? Seria um artifício apenas? Uma afetação para ser “diferente”? No final das contas, essa versão transmite, como cinema, o texto teatral? Ou se limita à teatralidade original com ajuda da admirável fotografia em preto-e-branco de Walter Carvalho? Funciona de modo autoral?

Se, no início, apesar dos comentários interessantes de Amir Haddad (que aparece como se fosse o diretor de uma hipotética montagem para o palco), o estranhamento não parece nada promissor, na medida em que o enredo vai sendo desenvolvido e o “ensaio-leitura” vai sendo deixado em segundo plano, a própria ação ficcional é capaz de acentuar nosso interesse – o que pode ser creditado à força do texto rodrigueano, afinal. Pois o conjunto das interpretações dos atores não é dos pontos mais satisfatórios do filme.

Pelo contrário, há equívocos evidentes, sendo o mais grave de todos a inadequação de Otávio Müller ao importante papel de Amado Ribeiro, o repórter que, com apoio de policiais mesquinhos como ele, cria um escândalo jornalístico a partir do inusitado beijo que um homem dá em outro, atropelado, agonizante, segundos antes de sua morte. Se o tipo físico do ator pode ter sido um atrativo para sua escalação, o desempenho é muito, mas muito aquém do que o personagem exigiria.

Aliás, cabe ressaltar que interpretar Nelson é um desafio tão imenso para nossos atores como interpretar os trágicos gregos ou Shakespeare. As armadilhas da caricatura e do ridículo nos personagens criados pelo dramaturgo estão em cada linha e ação sugerida, sendo que poucos atores têm se saído muito bem ao longo dos tempos. Neste filme, fica frequentemente destruída a espontaneidade exigida pelo texto quando a fala de um personagem deveria ser interrompida por outro: na maioria das vezes os atores esticam a última sílaba da palavra que antecede a interrupção, denotando reticências, mas sem que um outro ator realmente lhe interrompa a frase que estava sendo dita.

Stênio Garcia também decepciona na composição insossa dada a Aprígio, o sogro de Arandir - o homem comum que num ato de piedade atende ao pedido do atropelado em agonia. A escolha de Lázaro Ramos para este papel não pode deixar de ser questionada quanto à questão racial que poderia acrescentar ao filme e que é totalmente ignorada na composição dramática da situação. Seria ótimo que já pudéssemos ter atores de todas as etnias em diversos papéis, independendo da suposta etnia do personagem. É assim que já vimos Hamlets de pele negra, como poderíamos ver intérpretes de traços orientais em papéis de tipos ocidentais com toda a naturalidade, privilegiando-se a capacidade teatral do artista. A questão do phisique du role seria secundária, especialmente no palco, com suas circunstâncias de maior suspensão da descrença. Mas no filme, é apenas a questão da suspeita de envolvimento homossexual de Arandir com o morto que fica em destaque, tal como no texto, com toda a carga de preconceito e homofobia explícitas. E Lázaro Ramos também não empresta maior dimensão à angústia do personagem, exceto na cena final.

No final das contas, apenas Débora Falabella corresponde bem ao papel de esposa de Arandir, Selminha, papel criado por Fernanda Montenegro na encenação original da peça. Fernanda está na mesa de discussão e pontua algumas curiosidades sobre os ensaios e outros aspectos da escrita de Nelson Rodrigues. Mas, infelizmente, nem mesmo ela aparece bem na rápida intervenção da vizinha, Dona Maltide, apenas em leitura do texto. Ela elogia a participação de Zilka Salaberri na montagem de 1961, e quem conheceu Zilka pode imaginar que a atriz tenha feito mesmo muito bem seu papel. Mas Fernanda não transmite o aspecto suburbano em sua leitura, compondo a modulação vocal de uma pessoa pérfida, sem a cor local que ela mesma elogia na colega já falecida. Como o policial Cunha, Augusto Madeira se sai bem, corretamente.

Com este peso negativo nas interpretações, a estreia de Murilo Benício atrás das câmeras fica como uma promessa a ser verificada numa segunda tentativa.

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