Críticas


NO PORTAL DA ETERNIDADE

De: JULIAN SCHNABEL
Com: WILLEM DAFOE, RUPERT FRIEND, OSCAR ISAAC
07.02.2019
Por Maria Caú
Ousada tentativa de revelar o mundo através dos olhos e das tintas de Van Gogh

Dentre todos os grandes mestres da pintura, Van Gogh é provavelmente aquele que mais nos intriga, por sua trajetória de tintas (me perdoem a escolha clichê da palavra) tão dramáticas: um distúrbio psiquiátrico não inteiramente mapeado, com múltiplos episódios, alguns violentos, o mais famoso dos quais aquele em que ele cortou parte da própria orelha; penúria e falta de reconhecimento em vida contrastando com o ingresso no olimpo das artes plásticas após a morte; e, por fim, a morte trágica, mais comumente caracterizada como um suicídio. A verdade é que os gênios trágicos fascinam o público (e, por consequência, o cinema) muito mais do que aqueles que viveram vidas mais pacatas ou obtiveram sucesso sem grandes percalços. Ainda assim, convencionou-se pensar em Van Gogh mais como o pintor notável que tinha consciência dos domínios inexplorados para os quais estava levando esta arte que como o homem torturadíssimo, rejeitado por praticamente todos à sua volta e que exibia grande incapacidade de lidar com algumas das interações e rituais sociais mais comuns. No portal da eternidade tenta mostrar que essas duas facetas são indivisíveis e que foi a própria tensão entre fragilidade e potência que permitiu que o pintor holandês criasse uma obra que caminha bravamente entre esses dois polos.

Nesse sentido, o longa, dirigido por Julian Schnabel, ele também pintor, é mais exatamenete um filme sobre arte e processo criativo, uma narrativa sobre visão artística, claramente sem nenhuma pretensão biográfica, apesar de incorporar alguns elementos controversos apresentados em "Van Gogh: A vida", biografia de 2011 escrita por Steven Naifeh e Gregory White Smith, famosa por suas novas interpretações de alguns eventos-chave dessa conturbada vida. Também nesse sentido está a excelente escolha de Willem Dafoe para o papel principal, interpretando com mais de 60 anos um homem de 30 e tantos, sem qualquer tentativa de fazê-lo parecer jovem, consciente de que ele provavelmente se sentia bastante velho e alquebrado então. De fato, é maravilhoso que o cinema tenha redescoberto as potencialidades de Dafoe, preso por muito tempo em papéis de gênero que, apesar de interessantes, não faziam emergir todos os seus recursos dramáticos, recentemente explorados no incrível Projeto Flórida, de Sean Baker.

Pensando a obra como um filme sobre pintura e visão artística, no que ele guarda algumas afinidades com o interessante Mr. Turner, de Mike Leigh, a fotografia e a decupagem mostram seu brilho, se concentrando em uma enorme série de planos ponto de vista do pintor, em montagens estranhas, que pareiam um ponto de vista com um plano de conjunto ou um close de um ângulo neutro, como que sublinhando o fato de que estamos vendo o mundo através dos olhos (e das projeções de Van Gogh). Ou, ao contrário, acentuando a incapacidade dos outros de o encararem como era. Esses planos pontos de vista, sujos, embaçados, de luz oblíqua, lembram outro filme do diretor, o excelente O escafandro e a borboleta. Nessa direção, No portal da eternidade é difícil de acompanhar, desconfortável, optando por uma câmera na mão entre o observacional e o ostensivamente intrusivo, numa instabilidade que reflete a vivência cotidiana do retratado. Partindo dessa composição um tanto estranha e ousada, cabe sonhar com uma fotografia que fosse ainda mais radical, com a câmera inteiramente em primeira pessoa – e digo sonhar porque o cinema de longa-metragem nunca foi capaz de realizar a contento essa empreitada.

Irrepreensíveis são a arte e os figurinos, que reconstroem perfeitamente as figuras e os cenários que Van Gogh pintou, criando um efeito de reconhecimento instantâneo que deslumbra o espectador. O roteiro tem alguns soluços, como a forma como apresenta Gauguin, claramente caricatural, ou o salto temporal que precipita o desfecho. Também uma longa cena com um padre durante uma internação parece fora de propósito e por demais explicativa numa narrativa que havia antes recusado tal caminho. No entanto, o resultado impressiona na riqueza de detalhes, como o ponto de vista das pernas do pintor caminhando pelos campos, em suas cores mutáveis que ele imortalizou tão bem.



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