Críticas


PODERIA ME PERDOAR?

De: MARIELLE HELLER
Com: MELISSA McCARTHY, RICHARD E. GRANT
14.02.2019
Por Maria Caú
Finíssima discussão sobre autoria, plágio e culto à personalidade

Há muitos anos os espectadores de cinema e televisão aprenderam a amar os chamados “homens difíceis”, personagens que o público adora odiar, indivíduos imorais que ignoram as regras sociais e os preceitos da boa convivência, frequentemente solitários e de poucos amigos, de Melvin Udall (Jack Nicholson em Melhor é impossível) ao personagem-título da série House, passando por uma gama de protagonistas, do cinema clássico ao contemporâneo. De fato, nós, como espectadores, aprendemos a amar pessoas que caminham a estreita corda-bamba entre os arquétipos de vilões e mocinhos, aqueles que não gostaríamos de fossem nossos melhores amigos, mas cujos feitos obscuros ou comportamentos desafiadores das normas sociais nos atraem irresistivelmente, anti-heróis com uma espécie muito particular de magnetismo – desde, é claro, que essas pessoas sejam homens. Interessantemente, ainda é difícil vermos no cinema contemporâneo esse tipo de representação ligada às mulheres, que permanecem ou sendo alvo de uma identificação muito genuína, podendo até ter defeitos graves calculadamente explicados pela trama, ou são pura perfeição ou completa vilania. Basicamente, o cinema convencionou que, apenas para os homens, alguma dose de mau-caratismo pode ser não só perdoável, como até charmosa. Pois 2019 chegou e com ele uma gama de filmes plenos das chamadas “mulheres não gostáveis”, entre eles A Favorita e este Poderia me perdoar?, que conta a fascinante trajetória de Lee Israel, uma escritora especializada em biografias que, no início dos anos 1990, se viu num revés financeiro e acabou recorrendo a um artifício criminoso para pagar as contas: forjar cartas de suposto valor histórico redigidas por romancistas famosos e outras personalidades e vendê-las a uma rede de colecionadores.

Lee Israel é uma mulher nada simpática que encarna inteiramente o estereótipo do personagem escritor no cinema, ele mesmo mais comumente associado aos homens: é solitária, de poucos amigos (ou nenhum), alcoólatra, sem laços familiares, misantropa e mal-humorada, vive num apartamento caótico e sujo com seu gato, a única criatura que lhe inspira afeição sem entraves. Numa das primeiras sequências, temos já uma janela para a personalidade e as inclinações morais de Lee quando ela comparece a uma festa organizada por sua agente apenas para tentar estabelecer planos de trabalho. Não conseguindo, evita socializar, se afoga no uísque e termina por furtar um sobretudo. Esses clichês cinematográficos do personagem escritor são elevados no filme não apenas porque a personagem principal é uma mulher lésbica (e o roteiro não recorre a soluções fáceis para reconectar Lee ao mundo afetiva ou romanticamente), mas porque a interpretação de Melissa McCarthy dá à personagem a densidade necessária para a trama. Indicada ao Oscar pelo papel, McCarthy se dedicou quase que exclusivamente à comédia até o momento, à exceção de filmes que passaram despercebidos, como Um santo vizinho, em que ela e o também inicialmente comediante Bill Murray transitam bastante bem entre ambos os gêneros. Se suas qualidades como atriz foram subaproveitadas até então, isso certamente não coloca a comédia (que, com seu ritmo fino, exige uma concentração musical do ator) numa posição subalterna em relação ao drama, como um certo pensamento corrente e caretésimo ainda presente em Hollywood e no senso comum postula. Em realidade, a culpa recai sobre os (em geral) péssimos projetos em que ela se envolveu, e nos quais sempre deixou entrever um grande carisma. Outro fator é que McCarthy é uma mulher gorda de 48 anos, estando fora dos padrões de beleza e juventude “tradicionais” da indústria, o que acaba empurrando-a para papéis fundados numa (nem tão sutil) autorridicularização, que ela sempre soube driblar bastante bem com atuações mais multifacetadas do que tais projetos pediam, sendo um nome que movimenta milhões em bilheterias, categoria impensável para mulheres que não se enquadram no molde hollywoodiano da heroína.

Além disso, também indicado ao Oscar, Richard E. Grant está não menos que mesmerizante no papel de Jack Hock, homem gay que se torna parceiro de Lee no crime e com quem ela edifica uma amizade complexa, fundada na extrema desconfiança dos marginalizados. Tal relação é pontuada por momentos simples, mas tocantes, em que ambos baixam suas guardas e se abrem um com o outro. A partir dessas ótimas atuações, alinhavadas pela direção segura de Marielle Heller, o filme trava uma belíssima discussão sobre autoria (e plágio), culto à personalidade, memorabilia e a necessidade de se vender para obter sucesso profissional nas artes, de forma que, ambientado em 1993, época em que essas questões se tensionavam cada vez mais por conta da emergência das novas tecnologias e mídias, ele reflete sobre o presente, em que esses estiramentos atingem um ápice ali previsto. Nesse ínterim, é brilhante a forma como o filme costura o talento de Lee para emular a “voz” desses outros artistas, superpondo diferentes extratos de voz-over, narrados em registros diferenciados pela protagonista enquanto ela trabalha à máquina (ou às máquinas, visto que ela coleciona esses aparelhos antigos a fim de dar mais realidade às suas cartas). É nas máquinas, e na forma como a câmera passeia por elas e pelos escritos que elas produzem, que se coloca uma das grandes teses do filme, a ideia da nostalgia por, nas palavras de Lee, “uma época em que as pessoas valorizavam a palavra escrita”. A fotografia também escolhe um certo enclausuramento dos personagens, sempre legados a interiores ou a poucos exteriores cinzentos e parcamente iluminados, em que as distinções entre dia e noite se nublam a fim de transmitir o desnorteamento de um cotidiano sem quaisquer amarras de rotina ou o menor senso de pertencimento e estrutura humanos.

É preciso apontar, no entanto, que a narrativa se mostra aqui e ali um pouco enferrujada, com algumas das viradas sendo pressentidas de longe pelo espectador, ainda que o desfecho traga algumas surpresas. Mas a vitalidade dos personagens, lindamente “não gostáveis”, e o modo como a discussão apresentada funciona duplamente (como projeção de futuro e como tensão própria dos anos 1990) alçam o filme e fazem dele um grande exemplo de representação contemporânea da inter-relação riquíssima entre o cinema e a literatura.

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