Críticas


O RETORNO DE BEN

De: PETER HEDGES
Com: JULIA ROBERTS, LUCAS HEDGES, KATHRYN NEWTON, COURTNEY B. VANCE.
21.03.2019
Por Luiz Fernando Gallego
Apesar de haver pontos questionáveis no roteiro, mostra muito bem o inferno da dependência química, sem explorações, moralismos ou preconceitos.

O personagem Ben (Lucas Hedge) do título é um jovem dependente químico que está numa clínica de reabilitação e “limpo” há 77 dias. Ele aparece de surpresa na véspera do Natal na casa de sua mãe (Julia Roberts), seu padrasto, irmã adolescente e meios-irmãos pequeninos. A mãe mostra-se exultante com a chegada do filho, confiante nele - mas não deixa de retirar do armário de remédios alguns “perigosos” para dependentes, assim como esconde suas joias de valor. Já a irmã, nada confiante, telefona, ansiosa, para o padrasto que não está em casa naquele momento. Afinal, Ben estava internado e todos iriam visitá-lo no dia 25. Por que ele apareceu antes em casa? As crianças do segundo casamento da mãe adoraram ver Ben. O cachorrinho da família também.

Na primeira metade do filme não há quase do que nos queixarmos em relação ao difícil tema abordado: sem expor (nem muito menos explorar) situações desconfortáveis, é mostrado que dependentes químicos podem falar a verdade, mas que também mentem sem o menor pudor no caso da fissura pela droga surgir; eles podem fazer qualquer coisa para minorar a angústia que também é física, corporal, com sintomas extremamente desagradáveis e desesperadores. Por isso, aprendem, sobretudo, a evitar situações de “gatilho”, aquilo que, em seus cérebros, reativa o desejo/necessidade imperiosa pela droga. Se Ben começa a ficar tenso (ou tem algo que quer ocultar da família?), ele liga (ou disse que ligou?) para seu “sponsor” ("padrinho" do grupo de autoajuda) e, mesmo estando em outra localidade, é orientado a procurar um grupo onde se encontra para buscar apoio e não recair no automatismo do uso da droga. Esta é, aliás, a melhor cena do filme, até mesmo comovente, mas sem qualquer pieguice, dando oportunidade a um belo momento de interpretação do ator, já indicado a um Oscar há poucos anos atrás.

Na segunda metade, o enredo envereda por uma situação de suspense angustiante propiciada por uma ocorrência cuja reação da mãe-coragem (e Julia Roberts também está muito bem no papel) pode provocar alguma estranheza para parte da plateia: mas como agir nesse emaranhado de possibilidades se todas são muito ruins? Como escolher o que se deve fazer de “menos pior”? Fica uma certa sensação de que o roteirista e diretor Peter Hedges (pai do ator Lucas), meio como um “deus ex machina”, resolveu que o filme precisaria de mais ação para cativar plateias maiores. Mas se a gente não se incomodar muito com isso, o suspense se estabelece e surge outro retrato terrível desta doença tão grave que é a dependência química: as inconsequências do comportamento sob o domínio da droga, mesmo que no passado (e mesmo que no presente você esteja fazendo tudo para não se drogar mais), as inconsequências (em relação às quais você se lixou, nem teve consciência moral do que fazia) podem ter consequências, deixar rastros, dívidas - morais ou concretas, culpas, trazendo novos riscos de toda ordem.

Neste sentido, o filme, ainda que correndo o perigo de cair numa espécie de mensagem “institucional”, consegue evitar tal aspecto através da dramaturgia (clichê que seja) do pseudo-road-movie”. "Pseudo" porque a longa noite de percurso errático de mãe e filho num carro se passa todo dentro de uma pequena cidade. Mas as pequenas cidades, por mais que pareçam com o “padrão ideal” da “suburbia” americana (ou de qualquer país ocidental) também podem ocultar - e revelar - enormes riscos: um deles, por exemplo, é mostrado com a discrição possível quando Ben bate à porta da primeira casa em que vai, levado pela mãe, à procura do tal cachorrinho tão querido de todos, mas desaparecido enquanto a família estava na cerimônia de 24 de dezembro na Igreja local.

Esquecido do Oscar e com bilheteria abaixo do pretendido, Ben is back (título original) quase teve o mesmo destino de Boy erased: uma verdade anulada que não será lançado em circuito nos cinemas do Brasil, apesar de ter atores tão conhecidos como Julia Roberts (Nicole Kidman e Russel Crowe); e, por coincidência, Lucas Hedge em um papel de “desviante”: neste outro filme ele interpreta um jovem com inclinações homossexuais internado pelos pais numa outra clínica de “reabilitação”, só que para gays - essa terrível picaretagem que atormenta e violenta tantas pessoas que não se enquadram no padrão moral-religioso exigido pelo conservadorismo ao qual o mundo parece estar regredindo. Boy erased tem chance de ser lançado direto nas TVs por assinatura (e em DVDs, quem sabe?) e será interessante confrontar o talento do jovem ator em papéis com alguns pontos tangenciais ainda que totalmente dessemelhantes, exceto para os preconceituosos que estigmatizam comportamentos humanos que ninguém está livre de vivenciar potencialmente.

Voltando a O Retorno de Ben, o que importa mais do que a direção, pouco mais do que convencional, e questões sobre a roteirização, é o retrato acurado do inferno da dependência química, sem moralismo ou preconceito: a ficção, ainda que com alguns recursos menos satisfatórios no roteiro, mostrando, como em poucos filmes, uma situação demasiadamente humana.

São dispensáveis e questionáveis: a cena em que Juia Roberts "conversa" com um médico demenciado, acusando-o de ter prescrito analgésicos que não causariam dependência para o filho no passado, uma espécie de discurso-recado institucional; assim como outra passagem em que ela se acusa de ter se divorciado do pai de Ben, não porque mães não possam se acusar injustamente em busca de "causas", mas porque não interessa ao restante do filme este outro aspecto na história pretérita de Ben, fora da questão em si mesma do uso de drogas. Outras qualidades merecem ser lembradas: a fotografia do premiado Stuart Dryburgh, de O Piano (1993), a música eficiente de Dickon Hinchliffe (de Amores Inversos, 2013) e a edição também eficaz de Ian Blume.

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