Vencedor da Première Brasil no último Festival do Rio, O Céu de Suely chega para comprovar que Madame Satã apenas anunciava o grande talento de Karim Aïnouz. Da Lapa dos anos 1930 à Iguatu da era do DVD, o salto de qualidade é considerável. O que era lacuna no primeiro longa aqui é espaço consciente, a plena configuração de um estilo de narrar e fazer ver.
A história é um fiapo. Mas com ela o diretor – e seus co-roteiristas, naturalmente - urdem um tecido primoroso de sutilezas. Um cinema mais de impressões que de informações. Após um curto prólogo em flashback, passamos a conviver com a doce Hermila (Hermila Guedes), recém-chegada de um período em São Paulo, à espera do marido que ficou de vir com um gravador de CDs e DVDs piratas para ganharem a vida. Reencontra uma tia, a avó e um ex-namorado. Mas suas raízes não são suficientes para prendê-la naquele ponto do sertão cearense. Para comprar a passagem de volta, a opção será adotar o pseudônimo de Suely e rifar, entre os homens do lugar, “uma noite no paraíso” ao seu lado.
No fundo, a “ação” do filme não importa muito, mas sim a maneira como a personagem a conduz, num misto de aflição (espiritual) e indiferença (física). Importam as sensações de ócio e espera que regem seus movimentos. Hermila é uma mulher que de repente ficou estrangeira no seu ambiente de origem. Deixou de ser a “nordestina” para ser a imigrante. O filme abraça esse ponto-de-vista, exprimindo em imagens e sons o alheamento de Hermila.
Existe uma distância palpável entre o primeiro plano e o entorno. Seja através do desfoque, da expulsão de todo caráter “típico” para o espaço fora de quadro e para o som off, seja na seleção de vazios onde situar a deambulação e os encontros da moça, Aïnouz reduz o caráter descritivo e sublinha a aventura interior de Hermila. Em certos momentos, a relação figura-paisagem chega a lembrar a dos grandes filmes de Wim Wenders – o que soa não como decalque, mas como busca de um código similar para expressar a alienação.
Esse Nordeste melancólico e não-característico já aparecia nos planos “vazios” e na curiosa estilização audiovisual do documentário Sertão de Acrílico Azul Piscina, co-dirigido entre 1999 e 2004 por Aïnouz e Marcelo Gomes (de Cinema, Aspirinas e Urubus). Aqui, no entanto, o mesmo universo recebe o upgrade da fotografia de Walter Carvalho. O que mais se pode dizer desse artista prodigioso? Vale pelo menos sublinhar que sua sensibilidade é crucial para a equivalência harmônica entre intenções e resultados do filme.
De resto, é admirável a fluência do roteiro e da montagem, sem os solavancos nem o “explicadinho” de outros bons filmes brasileiros em cartaz. Da mesma forma, a maneira delicada como se fala de desejos e paixões (a tia pela amiga prostituta, o ex por Hermila) acaba por descolar O Céu de Suely de uma tradição segundo a qual o amor nos trópicos ou é melodrama, ou é escracho.
Karim Aïnouz lança um olhar compassivo e compreensivo sobre o anseio de evasão e a disponibilização do corpo, sem julgamentos morais nem euforia demagógica. Faz um filme simples e belo, autoral e despojado, como fruta fresca balançando ao vento.
O CÉU DE SUELY
Brasil/França/Alemanha/Portugal, 2006
Direção: KARIM AÏNOUZ
Produção: WALTER SALLES, MAURICIO ANDRADE RAMOS, HENGAMEH PANAHI, THOMAS HÄBERLE, PETER ROMMEL
Argumento: MAURÍCIO ZACHARIAS e KARIM AÏNOUZ
Roteiro: MAURICIO ZACHARIAS, FELIPE BRAGANÇA e KARIM AÏNOUZ
Fotografia: WALTER CARVALHO, A.B.C.
Montagem: ISABELA MONTEIRO DE CASTRO e TINA BAZ LE GAL
Direção de arte e figurinos: MARCOS PEDROSO
Som direto: LEANDRO LIMA
Música: BERNA CEPPAS e KAMAL KASSIM
Elenco: HERMILA GUEDES, GEORGINA CASTRO, MARIA MENEZES, JOÃO MIGUEL, ZEZITA MATOS, MARCÉLIA CARTAXO, FLÁVIO BAURAQUI
Duração: 88 minutos