Críticas


AMANTES CONSTANTES, OS

De: PHILIPPE GARREL
Com: LOUIS GARREL, CLOTILDE HESME
06.12.2006
Por Luiz Fernando Gallego
NÓS QUE AMÁVAMOS TANTO A REVOLUÇÃO

Amantes Constantes, único filme de Phillippe Garrel que está recebendo distribuição comercial no Brasil, chega incensado por admiradores entusiasmados, prêmios em festivais e prestígio crítico. Mas se pesquisarmos em sites internacionais dedicados a ensaios, debates e comentários sobre filmes, vamos descobrir que não existe um “pensamento único” que sustente a aura que fez deste longa-muito-longa-metragem o mais recente mito para cinéfilos supostamente antenados com as novidades da contemporaneidade. As restrições dos que não encontraram o grande filme esperado, mas apenas um filme grande desesperado, são quase sempre as mesmas, começando pelo auto-deslumbramento narcisista da narrativa com planos desnecessariamente longos e outros tantos marcadores típicos da “Nouvelle Vague”: na fotografia em preto-e-branco sem penumbras nem cinzas, na montagem “aos saltos”, etc.



Garrel seria um membro menos conhecido do famoso movimento disparado no final da década de 1950; e um dos mais radicais e fiéis mantenedores daquela linguagem que foi revolucionária um dia, e que, com os anos, foi, em parte sendo algo absorvida e diluída até mesmo no mainstream do cinema industrial, e, por outro lado, atenuada por muitos dos seus primeiros líderes, com exceção de Godard e deste seu epígono fiel. O restante do estilo inaugurado por Godard, Truffaut, Rivette e outros, foi abandonado e ficou datado como cacoetes cansativos do tempo em que a utopia dos ideais revolucionários estava também nas telas dos cinemas e nas canções de protesto anunciando que o sol já ia raiar, corolário da utopia maior que parecia estar tão à mão, logo ali, na esquina das barricadas estudantis de maio de 1968.



Para falar daquele tempo, o filme de Garrel remete a - e repete - uma estética e uma forma narrativa com o mesmo exaurido e exaustivo vanguardismo sessentista que, hoje, soa irremediavelmente passadista, tal como se ainda houvesse como idolatrar as ilusões com a “linha chinesa” do comunismo, o maoísmo e sua bizarra “revolução cultural” que foi tão idealizada pelos intelectuais ocidentais crédulos - mas que desconheciam a face perversa do que se passava na China. Esta “santa ingenuidade” foi objeto de uma cena auto-expiatória de Denis Arcand em Invasões Bárbaras, quando um personagem, professor universitário, conta que havia sido indicado, naqueles anos, para recepcionar uma atriz chinesa em visita ao Quebec e, sendo ele o comunista de plantão, elogiou o que Mao estava fazendo no país da moça - e ela ficou horrorizada com a admiração do professor canadense pelo “grande líder”. Arcand passara por situação idêntica em um festival de cinema e a inseriu no seu filme.



Les Amants Réguliers não deixa de ser, no que teria de melhor, e idealmente, um verdadeiro inventário das ilusões (perdidas) quanto ao momento que nos parecia tão próximo: o da “imaginação no poder”, e do poder que instalaria o paradoxo supremo da interdição “É proibido proibir”. Mas o filme ocupa três intermináveis horas para, no final das contas, constatar que... o sonho acabou. A morte do personagem principal é a metáfora óbvia da morte das utopias revolucionárias, morte anunciada e antecipada pela agonia intermediária do abandono ao uso de drogas pesadas, equivalente ao que passamos no Brasil, onde quem não radicalizou suas atitudes, indo para a clandestinidade e luta armada (que acabou em mais mortes e desalento) – caiu no chamado “desbunde” onde havia a ilusão de querer crer que o uso dos “paraísos artificiais” era um gesto de revolta e transgressão – quando não passava de uma capitulação a uma forma da antes tão execrada “alienação”...



Nas cenas iniciais, as barricadas nas ruas de Paris, as pedras, os coquetéis Molotov são mostrados longamente, alternando-se com cenas da imaginação dos jovens, identificando-se com os revolucionários de 1789, vendo a si próprios com roupas da Queda da Bastilha, em cenas algo constrangedoras: seja pela simploriedade do retrato que faz daqueles jovens, agindo tão romanticamente, mas sem qualquer pragmatismo revolucionário minimamente eficaz; seja a do próprio filme, totalmente identificado com o espírito de 1968, inclusive na já mencionada forma cinematográfica.



Constatada a impossibilidade da revolução, o personagem central, o poeta François, cai na fase da droga, em padrão parisiense: ópio e lassidão às custas de um dos colegas, mais interessado em usufruir da herança que recebera do que nos rumos da Revolução. Mas, mais do que a dependência de ópio, François vai desembocar numa dependência amorosa, em uma relação idealizada com a escultora Lilie, sem prever que o compromisso com o descompromisso, herdado dos mesmos ideais de “transgressão” da moral burguesa, vai levar esta relação-tábua-de-salvação para ele, a um naufrágio definitivo quando acabar. Ou seja, nada muito diferente de qualquer drama “burguês”, seja “de esquerda”, “de direita”, ou “de centro”...



Além de frustrar o espectador pelo retrato restrito que faz do desencanto revolucionário, especialmente para os que viveram algo daqueles ideais, ainda pesa mais vermos uma parte do mergulho na realidade adversa e “reacionária”, aprisionado na mesma forma (e fôrma) do cinema da época. (Como seria rever – e mais ainda, conhecer - La Chionoise de Godard, hoje em dia? – por sua sincronicidade com o zeitgseit, deve manter, pelo menos, um valor histórico e ser mais interessante do que este simulacro estético).



O cineasta parece estar, até hoje, querendo contestar o “cinema do papai” tão execrado por aqueles que fizeram a fama dos “Cahiers du Cinéma” - antes como críticos em ensaios famosos, especialmente aquele em que Truffaut atacava o “bom-gostismo” de “uma certa tendência do cinema francês”; e depois, com a estética dos primeiros filmes que realizaram na chamada “Nouvelle Vague”. Esta militância insistente do seu membro mais radical (e turrão?) traz à lembrança o discurso histórico/histérico de Caetano Velloso quando, no mesmo ano de 1968, voltou suas baterias - sempre acicatadas quando se vê contrariado - para a platéia que vaiava sua apresentação em um daqueles festivais de músicas; e que ele chamou de “a juventude que diz que quer tomar o poder”, mas que caracterizou como “a mesma juventude que vai, sempre, matar amanhã o velhote inimigo que já morreu ontem”.



Garrel se comporta como alguns músicos de hoje que se prendem a uma obsessão com “instrumentos de época”, sem atentar que Beethoven preferiria um piano com mais recursos técnicos e sonoros do que os precursores de seu tempo: cravo, pianoforte (ou hammerklavier), já que compunha para um instrumento que idealizava possível, mas que ainda mal estava nascendo. Os verdadeiros e grandes inovadores ultrapassam os limites de sua época e vão além do “possível”. Paradoxalmente, ainda no terreno da música, a modernidade que ampliou a barreira do atonalismo e chegou ao dodecafonismo de Schoenberg, viu o público das salas de concerto que consegue chegar até Mahler, Wagner e Bruckner, não conseguir aderir nem a Britten, quanto mais a Penderecki, Von Einen, Poulenc, Honneger, Hindemith, etc etc. Ou seja, Garrel reúne o pior de duas atitudes estéticas: um modernismo “déja vu” onde a “novidade” formal é velha; e este mesmo “modernismo” que fica estacionário em um cerebralismo afetado e desafetivado, sem empatia com o espectador interessado em conhecer o que seria o “grande filme” e que, como já foi dito, é um “filme grande”.



OS AMANTES CONSTANTES (LES AMANTS RÉGULIERS)

França, 2005

Direção e roteiro:
PHILIPPE GARREL

Fotografia: WILLIAM LUBTCHANSKY

Montagem: FRANÇOISE COLLIN, PHILIPPE GARREL

Música: JEAN-CLAUDE VANNIER, NICO, PHILIPPE QUILICHINI

Desenho de produção: NIKOS MELETOPOULOS, MATHIEU MENUT

Elenco: LOUIS GARREL, CLOTILDE HESME, JULIEN LUCAS, ERIC RULLIAT, NICOLAS BRIDET, MATHIEU GENET

Duração: 182 minutos

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