A questão mais interessante que O Labirinto do Fauno pode levantar diz respeito ao que seria mais assustador: a realidade quando nos traz ameaças que paralisam de pavor, ou tudo aquilo de que a nossa fantasia é capaz?
Obras como as de Edgard Allan Poe ou de Hoffmann, para ficarmos apenas com dois clássicos tidos como precursores da literatura fantástica, poderiam nos induzir à resposta de que a imaginação é capaz de conceber horrores “inimagináveis” – valendo a contradição. Vale lembrar que A Colônia Penal de Kafka viu transformada sua fantasia assustadora em obra premonitória - quando praticamente seus terrores se concretizaram nos campos de concentração nazistas. Além deles, só no século XX tivemos os gulags, os porões de torturas de ditaduras fascistas, as aplicações das “leis” de discriminação racial, tanto nos EUA como no regime de apartheid da África do Sul - dentre muitos outros mergulhos na aparentemente infinita capacidade do ser humano de criar ou recriar abismos piores do que o próprio inferno imaginado por Dante ou pelas religiões com a ênfase na culpa a ser redimida por punições sado-masoquistas.
A imaginação infantil não é menos pródiga na criação de monstros do que os piores delírios paranóicos de algumas formas de doença mental - nem do que a criatividade mórbida dos mais inventivos artistas. E é na questão formulada acima, contrapondo horrores reais e terrores imaginados, que reside o cerne do novo filme de Guillermo Del Toro. Entretanto, o cineasta e roteirista parece não querer deixar dúvidas: por mais apavorante que seja o mundo de fantasia da personagem central, a menina (significativamente nomeada) Ofélia (Ivana Baquero), a realidade à sua volta é muito pior. E para garantir isso, Del Toro pesa a mão na escatologia e nos requintes de sadismo e violência, especialmente nas atitudes do “Capitão Vidal”, o padrasto da menina, interpretado sem as sutilezas de que o ator Sergi López já demonstrou ser capaz em filmes como Uma Relação Pornográfica, ou como o psicopata aparentemente amistoso de Harry Chegou para Ajudar.
O clima de fábula alternada com metáforas pouco sutis do mundo “real” não atenua o grotesco das cenas bizarras, como os assassinatos que Vidal comete com estiletes furando olhos da vítima, ou quando ele mesmo “costura”, com doloroso prazer, sua boca cortada com uma faca pela personagem de Maribel Verdú. As mais assustadoras fantasias da menina ávida por leituras seriam menos fatais (até porque prometeriam um retorno a uma vida anterior como princesa em um reino mágico) do que esta realidade violenta e destrutiva na qual se encontra: um posto militar representando a ditadura de Franco em 1944, já há anos vitoriosa na Guerra Civil, e em franco (vale o trocadilho) alinhamento com o nazi-fascismo de Hitler e de Mussolini - que deram uma mãozinha e tanto para sua vitória.
Em suas excursões a um mundo paralelo (com algumas menções ao Reino de Oz ou ao de Alice no País das Maravilhas – em tintas bem negras) Ofélia enfrenta perigos asquerosos como o vômito de um enorme sapo, ejetado em forma de “bolha assassina”, contendo uma chave que lhe permitirá outro passo nas (sempre em número de três) provas a que tais heróis ou heroínas são submetidos para confirmar suas virtudes ou identidade. Um outro monstro tem olhos nas palmas das mãos e, portanto, uma face sinistra, com rosto e corpo emaciados lembrando as representações de zumbis, de um morto-vivo. Além de insetos-fadinhas e do Fauno (Doug Jones) do título, que pode ser amistoso – ou não.
Mas nada será mesmo pior do que a realidade violenta onde está com sua mãe perto de dar à luz um filho do padrasto sádico de Ofélia. À parte possíveis alusões psicanalíticas mais sutis, de inveja do irmãozinho que vai nascer ou de rejeição de uma nova Electra contra Egisto, o cineasta parece mais interessado em retomar a proposta de um filme anterior seu, o interessante A Espinha do Diabo (de 2001), no qual elementos sobrenaturais se misturavam com questões políticas, e sempre da Guerra Civil Espanhola – só que em 1939 e com as mesmas perseguições dos fascistas aos comunistas, situação que ainda se mantém em O Labirinto do Fauno, que se passa seis anos depois.
Neste labirinto, entretanto, del Toro parece ter se perdido em meio ao deslumbramento com efeitos especiais mais sofisticados do que no filme mais antigo - e na maior ênfase de sua fascinação pelo grotesco, um dos gêneros mais arriscados nas artes visuais, ainda que com antecedentes tão nobres como Goya na pintura (O Sonho da Razão produz Monstros) e Buñuel no cinema: não só, mas mais especialmente no destemor de seus filmes iniciais e nos da “fase mexicana” – do mesmo país de Del Toro. A fértil tradição hispânica nesta área, entretanto, parece trocada pela bizarrice à moda dos efeitos virtuais de Peter Jackson, seja por apelar a bichinhos virtuais nojentos como os de King Kong, seja no retrato delirante de duas mocinhas à maneira de Almas Gêmeas, por sinal muito mais bem-sucedido na mistura de fantasia e realidade,
Em A Espinha do Diabo, o fantástico não era “explicado” (aqui há um momento em que vemos Vidal vendo Ofélia como que falando sozinha) e o mundo das crianças era invadido pelas perversões dos adultos e pelos crimes, políticos ou não. O Labirinto do Fauno faz o caminho inverso de tentar substituir o mundo adulto, perverso e violento, por um mundo fantástico terrorífico, ainda que com mais esperanças de sucesso e poder. E deixa poucas dúvidas sobre o escapismo de Ofélia atraída por ameaças fantasiosas às quais se entrega: mais fascinantes e certamente infinitamente menos desprazerosas do que as do mundo real em que está imersa.
É uma pena que Del Toro tenha deixado de lado um “princípio” enunciado em A Espinha do Diabo: “O que é um fantasma? Uma tragédia condenada a se repetir sempre e sempre? Um instante de dor, talvez. Alguma coisa morta que aparenta estar viva. Uma emoção suspensa no tempo. Como uma foto borrada. Como um inseto preso em âmbar”. Com este filme mais recente, ele corre o risco de se transformar em fantasma de si mesmo, repetindo-se, mas como farsa grotesca em vez de avançar nas fronteiras do que chegou a parecer uma saudável influência buñueliana entrevista no seu filme de 2001.
O LABIRINTO DO FAUNO (EL LABERINTO DEL FAUNO)
México / Espanha / EUA, 2006
Direção e roteiro: GULLERMO DEL TORO
Fotografia: GUILLERMO NAVARRO
Desenho de produção: EUGENIO CABALLERO
Montagem: BERNAT VILAPLANA
Música: JAVIER NAVARRETE
Efeitos Especiais: CafeFX
Elenco: IVANA BAQUERO, DOUG JONES, SERGI LÓPEZ, MARIBEL VERDÚ
Duração: 112 minutos
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