Pedro Almodóvar declarou que “Dor e glória” não é uma versão literal de sua vida, mas que tudo o que acontece com o personagem do diretor Salvador Mallo poderia ter feito parte de sua história. Essa “autoficção” é plenamente justificável levando-se em conta que o cineasta completa 70 anos em setembro. Se não chega a ser um balanço de sua trajetória, “Dor e glória” pode ser considerado um novo ajuste de contas com seu passado, como fizera em 2004 com “Má educação”. Ao mesmo tempo, por lidar com a história de um veterano diretor em crise criativa, é também uma reflexão sobre presente e futuro, com direito a citação explícita a “Oito e meio”, de Fellini.
A sessão especial de seu filme “Sabor” numa cinemateca de Madri, 30 anos após a estreia, faz com que Salvador (Antonio Banderas) volte a procurar o ator Alberto Crespo (Asier Etxeandia), com quem rompeu relações desde então. Viciado em heroína, Alberto apresenta a droga a Salvador, que passa a recorrer a ela para amenizar as dores físicas e existenciais que o atormentam. A experiência com heroína o faz relembrar cenas de sua infância pobre, quando viveu numa espécie de caverna em Paterna, a relação com a mãe (Penelope Cruz) e com um pintor a quem ensinou a ler e escrever. Ao mesmo tempo, Alberto pede para encenar como um monólogo um texto em que Salvador relembra o sofrimento causado pela perda de um amor de juventude.
“Má educação” e “Dor e glória” são filmes complementares que revelam muito do que Almodóvar tem a dizer sobre si mesmo, sua origem, suas angústias. O primeiro tinha como protagonista um diretor jovem revivendo o passado de abuso por padres pedófilos, uma elaborada trama com elementos policialescos e um filme dentro do filme. No segundo, o diretor é mais velho, a opressão da educação católica e a metalinguagem surgem de forma mais sutil, e a narrativa é bem mais sóbria. Se em “Má educação” a palavra que ocupava a tela no fim era “paixão”, em “Dor e glória” a chave é “primeiro desejo”.
Ou seja, o desejo como um estágio inicial da paixão, justificando a narrativa sem grandes reviravoltas em “Dor e glória”, mas com ao menos um momento arrebatador, a encenação do monólogo. Almodóvar homenageia a figura materna colocando Penélope Cruz e Julieta Serrano, que interpretaram mães marcantes em seus filmes, no papel da mãe de Salvador na juventude e na velhice. A cada personagem com quem Salvador se reconcilia ao longo do filme, vemos o maior diretor espanhol vivo se reconciliando com si mesmo através de sua arte.
(Publicado originalmente no jornal O Globo de 13.06.2019)