Consta que Groucho Marx teria feito uma interessante ressalva sobre o“carnaval bíblico” que foi o filme de Cecil B. De Mille Sansão e Dalila, de 1949, interpretado pelo musculoso Victor Mature e por Hedy Lamarr: “Não consigo me interessar por um filme onde os peitos do ator são maiores do que os da atriz”. O que diria o mais ferino dos Irmãos Marx se estivesse vivo e assistisse o mais recente filme da série James Bond, 007-Cassino Royale?
Dentre as mudanças no perfil a que estávamos acostumados, uma das que mais chama a atenção é a ausência de exposição do corpo da atual “Bond girl”, a bela Eva Green – que já aparecera tão ‘ao natural’ em Os Sonhadores de Bertolucci. Ao contrário da famosa imagem primordial da primeira delas, a então estonteante Ursula Andress, que aparecia saindo do mar como uma turbinada “Vênus de Botticelli” (cena que foi reciclada por Halle Berry no filme anterior de 007), quem aparece agora, de shortinho, emergindo das águas é o novo James Bond, o super-sarado Daniel Craig. Aliás, não só de shortinho nesta cena, mas em nu lateral em outra - quando sofre torturas em partes as mais sensíveis da anatomia masculina, região que já havia sido alvo de tentativa de destruição no ancestral Goldfinger.
Não há só uma mudança no perfil do personagem que, pela primeira vez nas telas, perde um tanto do aspecto sofisticado-cínico (que estava descambando no estilo almofadinha do antecessor imediato, Pierce Brosnan) para ressurgir com mais peitorais, mais brutamontes, mais ‘casca-grossa’, ainda que mantendo a elegância dentro do smoking, o gosto por dry martinis (sem mais tantas exigências no preparo) e o uso de ironia em frases de efeito.
Aparece também um novo lado “os brutos também amam”, amor que é o risco supremo para o narcisismo – dele e de todos os humanos. Por amor, o novo Bond pode pensar em pedir demissão da carreira de agente secreto de Sua Majestade, abortando o que seria um promissora carreira, apesar de que este seja o vigésimo-primeiro episódio da série (oficial). Talvez este filme pretenda começar tudo de novo, considerando que só agora Cassino Royale - que foi o primeiro livro com Bond escrito por Ian Fleming - esteja sendo “oficialmente” levado às telas. O livro era o único que havia sido vendido para outro produtor quando a dupla Saltzman & Broccoli resolveu investir no que se revelaria um dos mais longevos ciclos da história do cinema, inaugurado com - o aqui apelidado inicialmente - O Satânico Dr. No, ainda sem ter no título os numerozinhos zero-zero-sete que não queriam dizer nada para nosso público em 1962. E quase nada para o público do mundo todo.
Parte da divulgação de James Bond se deu graças a um garoto-propaganda (como se dizia na época) bem especial: nada menos do que o Presidente dos EUA, John Kennedy, que havia declarado ler e gostar dos romances de espionagem de Fleming. No Brasil, pelo menos de início, a deslumbrante Ursula Andress chegou a chamar mais atenção do que o então desconhecido Sean Connery: o filme chegou a ser apelidado por meninos excitados - e que poderiam ser precursores do “Casseta & Planeta” - de “A Satânica Dra. Nua” – o que era mais um desejo, já que a personagem de Ursula nem era “doutora” nem aparecia nua. Mas para a época, o biquíni que ela usava era tão sumário – mesmo com uma faixa grossa na cintura onde ela carregava um facão enorme – que valia por uma nudez.
Nudez feminina que agora nos foi amplamente escamoteada em benefício da superexposição dos dotes físicos do saradão Craig, com um forte “molho” de porradas, machucados e ferimentos que chegam a sugerir a possível intenção de seduzir o lado sado-masô das platéias. Estarão de olho no público feminino, talvez menos interessado nas aventuras dos mais recentes exemplares da série? Ou quem sabe, criando um fetiche? Ou estão atirando em múltiplas direções – o que é mais provável? Mais ação física para os rapazes e mais exibição de corpo masculino para moças e para rapazes que preferem rapazes. O que acaba por lembrar a famosa máxima eternizada por O Leopardo de Visconti, baseado em Lampedusa, segundo a qual as coisas precisam mudar para permanecer tudo como está. Para que os filmes de 007 permaneçam sendo feitos, há que fazer mudanças.
Uma das mudanças mais sutis e que vem sendo menos comentada diz respeito à relação do “novo” Bond com “M”, seu chefe - que já há quatro filmes passou a ser encarnado(a) por Dame Judi Dench, numa reviravolta herdada do bloco anterior que teve Brosnan como o espião. Não contente de terem transformado “M.” em mulher (sinal dos tempos), desta vez, a inicial pode até sugerir a função de “mãe” para James: ela zanga com ele por algo que ele fez mal feito no início do filme e o afasta das atividades; ele, turrão como um adolescente teimoso e ferido no orgulho, continua por conta própria; ela recebe essas notícias como travessuras e com certa complacência, meio que fingindo que está aborrecida; mais adiante ele pensa em sair da “barra da saia” do Serviço Secreto - e lá para o final ela vai consolá-lo por sofrimentos que ele passou com o ar mais compungido a que se permitiria uma dama inglesa com a determinação de uma Thatcher que não perdeu totalmente a ternura.
Se o espectador não se divertir com esses esforços engraçadinhos de mudar para permanecer, poderá se incomodar com a “barriga” das muitas e longas cenas de carteado acrescidas com um exagero de situações perigosas que esticam o filme para 144 minutos, algo além do razoável para manter o pique. O ritmo se refaz, é verdade, mas não era preciso ameaçar o incauto - e por vezes quase ingênuo troglodita em que Bond está se tornando – com um infarto precoce. Se exagerarem, o personagem correrá o risco de até vir a “morrer”, apesar de tantos esforços de reciclagem. Mas como ele já quase desapareceu após a fase Timothy Dalton e está aí de novo...
CASSINO ROYALE (CASINO ROYALE)
EUA/Inglaterra/República Tcheca, 2006
Direção: MARTIN CAMPBELL
Produção: BARBARA BROCCOLI
Roteiro: NEAL PURVIS, ROBERT WADE, PAUL HIGGIS, baseado na novela de Ian Fleming
Fotografia: PHIL MEHEUX
Elenco: DANIEL CRAIG, EVA GREEN, JUDI DENCH, JEFREY WRIGHT, MADS MIKKELSEN, GIANCARLO GIANNINI
Duração: 145 minutos
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