Críticas


ESTOU ME GUARDANDO PARA QUANDO O CARNAVAL CHEGAR

De: MARCELO GOMES
18.07.2019
Por Maria Caú
Espelho da crescente desumanização do mercado de trabalho brasileiro, o documentário é um dos filmes mais importantes do ano.

Estreou no dia 11 de julho, sem qualquer alarde, como frequentemente estreiam as maiores pérolas, em especial os documentários, um dos filmes mais importantes do ano: Estou me guardando para quando o carnaval chegar, de Marcelo Gomes. O longa segue um formato bastante corrente na atualidade – o documentário-ensaio que parte das experiências do realizador para abordar temas mais amplos e socialmente relevantes –, mas prova que o modelo, que parecia um pouco desgastado e repetitivo nos últimos anos, não se esgotou de forma alguma. Retornando à cidade de Toritama, no interior de Pernambuco, Gomes encontra um povoado muito diferente da pasmaceira que ele conhecera menino, ao lado do pai caixeiro-viajante. Ali se instalou um polo de fabricação de jeans, ofício com o qual trabalha hoje, direta ou indiretamente, a grande maioria dos habitantes da cidade, com suas pequenas e mal ordenadas casas convertidas em oficinas no interior das quais as horas de labor se estendem madrugada adentro.

Esses operários, que não têm direitos trabalhistas e ganham apenas por produção, precisam sacrificar qualquer espaço de lazer para alcançarem uma renda digna, e vivem com a ilusão de estarem inseridos num sistema justo, em que “dependem apenas de seu próprio esforço”. Quando opta por deixar que eles falem sobre as “maravilhas” desse esquema sem confrontá-los diretamente, o diretor revela suas muitas incongruências com mais força do que se fizesse um filme panfletário ou de discurso muito marcado. Assim como eles, o espectador tem a possibilidade de paulatinamente ganhar consciência da crueldade de um sistema de trabalho que trata as pessoas como máquinas – e uma das sequências mais impactantes é aquela em que Gomes decupa os movimentos repetitivos das máquinas de costura e evidencia a angústia que repara neles (e aqui é fácil lembrar da crescente maquinização de Carlitos à fábrica de Tempos modernos).

Esse processo, bastante bem construído pelo roteiro, atinge seu ápice quando se descobre o significado do carnaval para o povo de Toritama. Massacrados pela falta de diversão e descanso, nesta época os moradores vendem o pouco que conquistaram (até mesmo eletrodomésticos básicos, como geladeira e fogão) para conseguirem viajar para o litoral e passar alguns dias de folga na praia. As cenas dessa preparação, um misto de euforia e surto coletivos, são tão curiosas quanto chocantes (se estivéssemos diante de uma ficção, diríamos inverossímeis). E, com o filme estreando em consonância temática perfeita com a situação atual do país (em que uma truculenta reforma da Previdência acaba de ser colocada em curso), nos resta perguntar: em quantos anos estaremos todos mergulhados num trabalho desumanizador, exaustivo e sem perspectivas, ou seja, nos guardando para quando o carnaval chegar?





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Outros comentários
    4918
  • Luiza Alvim
    23.07.2019 às 15:53

    Acabei de assistir esse filme maravilhoso. Sem palavras, maravilhada com a contundência e parabéns pela crítica que recupera esse sentimento.