Dias Selvagens nos confronta com uma vida e um filme que se estruturam a partir de lacunas, faltas e ausências. Entre músicas latinas com comoventes arranjos deliciosamente kitsch dos anos 1950 – marca que parece ser um verdadeiro fetiche do diretor Wong Kar-Wai - a mulher que criou o personagem principal teima em negar-lhe a informação de quem é a verdadeira mãe do rapaz. Afirma que ele nunca se afastará dela exatamente por conta do ódio que ele sente por ela não revelar este segredo.
A psicanálise diz que, em cada vida, o ódio é um sentimento que surge antes do amor. Isto, por causa das frustrações da mais tenra infância, quando os cuidadores não são capazes de prover imediatamente necessidades e desejos dos pequeninos. Nosso narcisismo infantil odeia o outro que não nos completa. Só mais adiante é que a criança pequena reconhece que quem nos frustra é quem também nos atende. E a partir disto é que podemos amar. Aprendemos a amar a partir do amor que recebemos de quem cuida de nós: geralmente nossas mães.
O personagem central do filme mostra-se incapaz de amar e de ter consideração pelas mulheres que se apaixonam por ele. E talvez se apaixonem exatamente pela tendência de admirarmos o auto-enamoramento de quem parece amar tanto a si próprio. Mesmo que tal aparência seja apenas o refúgio narcisista de tentar bastar-se, evitando novas decepções nos relacionamentos, a postura auto-centrada pode exercer enorme fascinação. E tal como a mãe adotiva que não quer que ele se separe dela, duas moças o disputam, um amigo quer ser como ele – até mesmo se apaixonando por uma das moças que ele abandona - e um policial vai se interessar pela outra, igualmente desprezada. Este policial, mais tarde, vai tentar socorrê-lo.
A partir do momento em que o encontro com a mãe biológica se define como um não-encontro e não há mais o que procurar, vendo-se definitivamente frustrado na expectativa que alimentava seu vôo pela vida, o personagem se desestrutura de vez. Enquanto isso, os demais mantêm uma esperança vã, à procura de serem contemplados com o olhar mais atencioso que ele nega - e que lhe foi negado. O filme o acompanha nesta desestruturação, desorganizando-se, abandonando a narrativa mais linear, os enquadramentos esteticamente irretocáveis e as cenas tão cheias de espelhos como nos filmes de Joseph Losey, ainda que neste filme muitos estejam oxidados e embaçados. Precipita-se um desfecho que é, do ponto de vista formal e da sintaxe, igualmente "desconstruído".
A falta de atendimento de nossas expectativas amorosas pode provocar desistência, afastamento, retraimento decepcionado. Ou então, o oposto: a adesão insistente à espera de um amor que não se recebe, mas que realimenta o desejo. Cinco personagens gravitam em torno de um sexto que girava em torno da procura de uma mãe que se faz sempre invisível. Em sua segunda obra, realizada em 1991, Wong Kar-Wai inaugura uma parceria de oito filmes em conjunto com o fotógrafo Chistopher Doyle, certamente um colaborador essencial para o visual esteticamente brilhante de Dias Selvagens. E há quinze anos já antecipava um dos temas centrais que encontramos em seus filmes seguintes lançados anteriormente no Brasil: Amor à Flor da Pele,, 2046 e, sobretudo, a obra-prima A Mão, episódio do filme “Eros”: uma pequena jóia sobre a fixação de uma pessoa por outra que in-completa a relação amorosa.
# DIAS SELVAGENS (A FEI JING JUEN)
Hong Kong, 1991
Direção e roteiro:WONG KAR-WAI
Fotografia: CHRISTOPHER DOYLE
Montagem: KAI KIT-WAI e PATRICK TAM
Música: DAVID BOWIE
Elenco: LESLIE CHEUNG, MAGGIE CHEUNG, CARINA LAU, ANDY LAU, REBECCA PAN, TONY LEUNG, JACKY CHEUNG.
Duração: 94 minutos
Site oficial: : www.kino.com/daysofbeingwild