Em Babel, fazendo jus ao título, escutamos falas em inglês, espanhol, árabe, japonês e até mesmo duas frases em francês. Diferentes locações e personagens de diversas nacionalidades sofrem uma inesperada verticalização em suas vidas subitamente "globalizadas" a partir de um tiro de fuzil disparado pela inconseqüência de dois meninos marroquinos em posse de uma arma de fogo. Para tornar o significado já óbvio do título ainda mais explícito, uma personagem é surda-muda e, ao se deter sobre ela, algumas cenas se alternam entre tomadas objetivas - cheias de som e de fúria em discotecas de Tóquio - e cenas como que vistas pelos olhos da jovem Chieko (Rinko Kikushi, comovente em ótimo desempenho) - quando o que se escuta é o som do silêncio no qual vive imersa.
Mas não precisamos ser surdos para não escutarmos e/ou não entendermos nossos semelhantes, tão próximos e tão distantes - seja geográfica, seja culturalmente. Esta seria uma das “mensagens” explícitas do filme. Para demonstrar seu teorema (que é auto-explicativo), o diretor Alejandro Iñárritu e o roteirista Guillermo Arriaga pesaram a mão nas desgraças encenadas, indo além do que já nos ofertaram em matéria de infelicidade nos seus filmes anteriores, Amores Brutos e 21 Gramas, sugerindo que as raízes dos antigos dramalhões mexicanos invadiram a sua torre de Babel.
Tal como em seus outros filmes, a narrativa segue uma linha anacrônica de exposição dos fatos, o que parece ser um golpe de efeito para deixar a platéia em estado de tensão quase intolerável. Pois o espectador acompanha, alternadamente, uma espécie de ação “atual” no México fronteiriço com os Estados Unidos enquanto tem acesso a eventos ocorridos “antes”, no Marrocos. Neste país, os turistas Brad Pitt e Cate Blanchett encontram seu dia de O Céu que nos Protege – e melhor seria dizer “não protege”: numa terra estranha, em crise pela perda mais anterior de um filho, ela foi atingida por uma bala - nem tão - perdida e o calvário da falta de assistência numa estrada que corta a região, árida e semi-desértica, nos é mostrado em detalhes tantalizantes. Destaque-se a carência de solidariedade dos demais companheiros de viagem - ocidentais - chocando-se com a tentativa humilde de auxílio, ainda que primitiva e sem recursos, prestada por árabes em atitude conformada e fatalista, mas não necessariamente indiferente. Claro que estamos falando das pessoas simples de vilas miseráveis e não das “autoridades”, sejam marroquinas ou americanas, que encaram a situação como “política”, temendo que tenha havido um ato terrorista.
Já a “ação” mexicana, cronologicamente subseqüente ao que se acompanha no Marrocos - embora exibida simultaneamente - envolve um casalzinho de filhos de Pitt e Blanchett atravessando a fronteira, levados ao México pela governanta (ilegal nos EUA) que não tem com quem deixá-los para ir ao casamento de seu filho. Novamente a inconseqüência algo naïve – agora dos chicanos, especialmente por parte do personagem interpretado caricaturalmente por Gael García Bernal – vai colocar as crianças e a (até então) cuidadosa babá (Adriana Barraza, excelente) em sérios e graves riscos, incluindo a desorientação em um deserto como aquele onde estão os pais das criancinhas americanas, em situação tão ou ainda mais difícil. A escolha sobre quem sofre mais lembra a (falta de) "escolha de Sofia".
O espectador acompanha as duas ações em cenas que se alternam, sabendo que uma desgraça antecedeu a outra, mas sem saber o que de pior ainda poderá acontecer a uns e outros. Em algum momento, o desfecho já não importa: não interessa mais se os perigos se atenuarão ou se tudo vai ficar pior ainda do que já está, pois a platéia já foi levada a um estado de expectativa e angústia que faria a festa do mais dedicado masoquista.
Paralelamente, a história da jovem japonesa fica – em parte – como um corpo estranho em relação às duas outras narrativas, o que por um lado enfraquece este segmento que, isoladamente, poderia redundar num filme à parte até bem interessante. O problema é que, mesmo existindo uma conexão Tóquio com os demais eventos, o que se passa com a surda-muda Chieko pouco ou nada tem a ver com os mesmos fatores que desencadearam as duas outras ações. A moça, que perdeu a mãe há menos de um ano, sente-se rejeitada e marginalizada por sua deficiência auditiva; e apenas a presença de um detetive (outro ótimo desempenho) em busca de informações sobre a origem do fuzil que foi parar nas mãos dos meninos marroquinos é que liga o drama da jovem ao restante da ação. A ligação mais forte acaba sendo através de algo menos concreto do que um tiro, mas talvez tão forte quanto: o desamparo e a solidão nossa de cada dia, seja nos desertos, seja nas grandes cidades.
Já não importam tanto a força dos atores ou a habilidade manipuladora do cineasta com os golpes de efeito do roteiro (algumas vezes com causas e conseqüências passíveis de algum questionamento): a soma rebarbativa de desgraças para a família americana chega às raias do intolerável enquanto a exposição da insensatez humana em seus preconceitos e desgovernos fica em pano de fundo - e até mesmo por sua obviedade. A exasperação a que o espectador pode ser conduzido atinge seu auge quando uma ameaça de amputação alimenta o clima de expectativa de que o pior ainda pode estar por vir ( !!! ) . Desta vez, os recursos novelescos embalados por narrativa cinematográfica artesanalmente eficiente não foram suficientes para que Iñarritu reproduzisse os melhores resultados de 21 Gramas e deixam novamente em situação bem questionável o cineasta que “comentou” o “11 de setembro” em um filme coletivo com as imagens concretamente óbvias e chocantes dos corpos caindo das torres.
# BABEL (BABEL)
EUA, 2006
Direção: ALEJANDRO GONZÁLEZ IÑÁRRITU
Roteiro: GUILLERMO ARRIAGA, baseado em idéia de Arriaga e Iñárritu
Fotografia: RODRIGO PRIETO
Montagem: DOUGLAS CRISE e STEPHEN MIRRIONE
Música: GUSTAVO SANTAOLALLA
Direção de Arte: RIKA NAKANISHI
Elenco: CATE BLANCHETT, BRAD PITT, GAEL GARCÍA BERNAL, JAMIE MCBRIDE, KÔJI YAKUSHO, ADRIANA BARRAZA, RINKO KIKUSHI
Site oficial: www.paramountvantage.com/babel/